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Philippe Dubois e a mulher argelina

Philippe Dubois aborda a questão das relações entre campo e fora-de-campo na fotografia, comparando-a com o cinema e discutindo o exemplo da fotografia de Marc Garanger.

Em seu livro O ato fotográfico e outros ensaios, no capítulo intitulado “O golpe do corte: a questão do espaço e do tempo no ato fotográfico”, Philippe Dubois aborda a questão das relações entre campo e fora-de-campo na fotografia, comparando-a com o cinema e discutindo o exemplo da fotografia acima, de Marc Garanger, que ilustra seu texto. Em sua análise, podemos encontrar um suplemento ao breve comentário de Agnès Varda sobre outra fotografia da mesma série. Eis o que escreve Dubois:

[…] em fotografia, sabemos que o “olhar para a câmera” é uma coisa totalmente normal, ensinada e até instituída. Quase todo retrato (individual ou coletivo) […] funciona a partir do princípio do cara a cara entre o fotógrafo e o modelo. Decerto o olhar nem sempre está exatamente no eixo ótico do aparelho, mas pelo menos é frontal. Na hora, é um espaço fora-de-campo bem diferente que se coloca no lugar, um fora-de-campo que não é mais lateral, que não se prolonga mais além dos bordos do quadro, mas um fora-de-campo que trabalha na profundidade da imagem, ou melhor, em seu avanço, que não transborda mais pelos lados, mas pela frente, pelo que está de fato na origem do corte. Um fora-de-campo, portanto, que posiciona o operador explicitamente, que o integra mais ou menos como parceiro invisível, que designa seu lugar, que é o próprio lugar do olhar constitutivo da cena e do próprio campo. À lateralidade do fora-de-campo cinematográfico voltado sobre si mesmo, em seu encerramento ficcional, na ausência simulada de qualquer instância enunciadora, a fotografia opõe desse modo um fora-de-campo que opera na frontalidade, ou seja, um fora-de-campo aberto, que marca mais ou menos a presença do sujeito da enunciação.

Encontraremos um belo exemplo dessa designação pelo olhar frontal da posição fora-de-campo da enunciação fotográfica nas fotografias de mulheres argelinas que Marc Garanger realizou em 1960 e que foram publicadas recentemente [Dubois escreve na década de 1980.]. Conhecemos a história dessas imagens, a “situação fotográfica extrema” de onde nasceram: como o exército francês na Argélia decidiu constituir uma ficha sistemática de cada autóctone dotando-o de uma “carteira de identidade francesa“, Marc Garanger viu-se na obrigação de fazer desfilar diante de sua pequena câmara escura cerca de duzentas pessoas por dia. Entre a população assim filtrada, esquadrinhada, devorada, havia evidentemente grande número de mulheres argelinas, que o dispositivo obrigava a baixar o véu diante da objetiva. Terrível desnudamento dos rostos de mulher, desprezando todas as tradições locais. É fácil adivinhar a relação de força, o esmagamento, a agressão e a humilhação que tal situação implicava. Em suma toda a violência e a cegueira do colonialismo. E, contudo, quando olhamos essas fotos de mulheres argelinas sem véu, literalmente expostas ao voyeurismo policialesco do ocupante, quando se as observa na nudez de seu rosto e sobretudo na frontalidade firme e total de seu olhar – direto no eixo, em nosso olho -, temos de convir: jamais o menor sinal de vergonha, de fuga ou de derrota. Ao contrário, só a certeza, a força tranquila, o brilho inabalável. De fato, o “milagre” dessas fotos deve-se por inteiro à inversão que se opera no face-a-face estrito. Porque focalizam seu olhar na própria objetiva que as viola e pretende roubar-lhes a identidade, porque em nenhum momento o olhar foge, todas essas mulheres, em sua absoluta retidão, não apenas assumem plenamente o olhar que o ocupante faz pesar sobre elas, com tudo o que ele veicula de ignomínia, mas sobretudo, elas no-lo mandam de volta, elas devolvem-no a ele (a nós) mesmo(s). Posicionando o operador em seu ato e perante ele, apontando todo o dispositivo do qual ele não passa de um ator, cada uma dessas mulheres parece dizer-nos: “vocês quiseram me ver, me impor seu olhar, vocês me obrigaram a tirar o véu do rosto. Bem, olhem agora, olhem nos meus olhos, e de uma certa maneira verão vocês mesmos, descobrirão neles de que é feito seu próprio olhar”. O olhar estritamente frontal dessas mulheres, ao designar com o mais nítido dos vigores, como uma flecha que alcança seu alvo direto, a posição do enunciador fotográfico que se acreditava protegido em seu fora-de-campo, funciona desse modo como a melhor e mais implacável reposta à coerção da qual são objeto: obriga-nos, por sua vez, a aí reconhecer o desprezo que tiveram de aguentar. Inversão do fora-de-campo pelo campo no jogo da frontalidade do olhar. Transformação da tomada fotográfico-militar que visa instituir uma identidade francesa”, numa espécie de afirmação de independência pelo olhar que produz um efeito inverso: uma retomada de identidade. As mulheres argelinas de Garanger, nesse sentido, recolocando a enunciação policialesca em seu lugar, enchem nossos olhos, ousamos dizer.

Dubois exagera as diferenças entre o fora-de-campo no cinema e na fotografia, uma vez que tende a identificar o primeiro com a ficção e o domínio semiótico do símbolo e a segunda com o registro de situações reais (“de um real”, escreve ele mais de uma vez no livro) e o domínio semiótico do índice. Em suas obras mais recentes, Dubois problematiza justamente esse tipo de polarização. No entanto, apesar de não poder ser entendida como uma regra geral, a diferenciação que ele propõe, no trecho citado, entre cinema e fotografia é útil para identificar algumas das características dominantes da prática da fotografia como documento e da prática do cinema como ficção. Quando esse é o caso, fotografia e cinema efetivamente podem ser diferenciados em relação à forma do fora-de-campo, que tende a ser predominantemente frontal na primeira e lateral no segundo.

A frontalidade do fora-de-campo é evidente nos retratos fotográficos, como a fotografia de Marc Garanger que Dubois discute. O olhar espectatorial encontra o olhar do sujeito fotografado, que é preciso reconstituir como olhar que se dirige ao operador do aparelho, no momento do ato fotográfico. A frontalidade inscreve a experiência espectatorial na relação indiciária que, segundo Dubois, define o modo de constituição da imagem fotográfica. Esta torna-se indício, vestígio, rastro ou traço de um real que passou, que não se pode mais experimentar senão por meio do testemunho (sempre parcial) prestado pela imagem.

O que testemunha uma imagem? Qual é o testemunho registrado, por exemplo, na fotografia de Marc Garanger da mulher argelina? Eis a questão que não cessa de assombrar qualquer interpretação da imagem – e, sem dúvida, a de Dubois, que se vê levado a imaginar, pela escrita, o que “cada uma dessas mulheres parece dizer-nos”. Assim como Varda, para quem o olhar da mulher da fotografia que analisa diz “Não!”, Dubois atribui palavras à imagem, ao sujeito que foi capturado em sua superfície. O testemunho do ato fotográfico se encontra na situação dialógica que deu vida à imagem, é o que tudo isso parece indicar. O único problema é que não resta nada além de um traço mudo, de um vestígio oco, de um rastro silencioso da situação dialógica da qual surgiu, por um golpe de corte, a imagem fotográfica.

Parte do conteúdo acima foi publicada pela primeira vez em 14 de dezembro de 2010. O texto foi revisado e expandido, quase três anos depois, para ser republicado nesse post.