Soleil Ô (1967), de Med Hondo, é um filme tão atual quanto algumas das questões que aborda – o racismo, as heranças do colonialismo, a imigração, a diáspora, o exílio, a modernidade, o anonimato da experiência urbana etc. Mas é em sua abordagem dessas questões que o filme encontra sua contundência, que torna possível o transbordamento dos conteúdos históricos e políticos dos temas que representa por meio das formas artísticas e poéticas de seu trabalho de representação.
Há uma linha narrativa que atravessa o filme, em torno das experiências do protagonista, que sai da Mauritânia e vai para a França em busca de trabalho. Da identificação inicialmente plena com os signos da civilização universal encarnados na metrópole, o protagonista passa à perturbadora constatação de uma tensão irredutível: é difícil encontrar trabalho, os sonhos se transformam em desilusão, enquanto os olhares enquadram seu corpo, com base na cor da pele, como um corpo estranho – nem humano, nem animal: um negro. Ele experimenta o exílio como uma sucessão de encontros: uma conversa sobre trabalho com um francês que reafirma a discriminação, em sua casa repleta de riqueza; um jantar com outro francês, que reconhece o problema do racismo; um encontro com uma francesa e a inscrição sexual do racismo como fantasia; a fuga em direção ao campo e à natureza; etc.
Ao mesmo tempo, a tecelagem que dá a ver essas e outras situações narrativas busca seus fios no teatro, no recurso a marionetes e a performances, na música e no uso da montagem para criar efeitos de choque e de perturbação do olhar espectatorial, como se fosse preciso jogar poeira nos olhos para fazer ver melhor, interrompendo a transparência suposta do cinema como janela para o mundo e interpelando diretamente o espectador a partir da opacidade da poesia. Há, de fato, uma beleza contundente no modo como o filme quebra a quarta parede, em alguns momentos, para se dirigir ao espectador, assim como na forma como seu andamento demarca uma espécie de pulsação – e o que pulsa é o coração das trevas.
Soleil Ô é uma viagem ao coração das trevas que inverte e desloca os termos do imaginário colonial que orienta a ficção de Joseph Conrad. No romance Heart of Darkness (1902), Conrad narra a viagem de Marlow em busca de Kurtz no interior do continente africano como uma viagem ao coração das trevas. A narrativa de Conrad representa a violência do colonialismo como processo de perda de sentido. O mesmo Kurtz que buscara compreender os africanos além da oposição entre civilização e barbárie é tanto quem afirma o projeto de extermínio – “Exterminate all the brutes!” – quanto quem desvela a verdade do genocídio: “The horror! The horror!”.
Ao mesmo tempo, a violência do colonialismo depende da dissimulação de sua própria falta de sentido. Nesse sentido, Marlow mente para a noiva de Kurtz, que encontra depois de retornar à Europa, dizendo que a última palavra que ele pronunciou antes de morrer foi o nome dela. O coração das trevas é, no romance, tanto o horror da violência quanto o horror de seu apagamento, de sua dissimulação, de sua ocultação.
Em Soleil Ô, a falta de sentido da violência do colonialismo é, ao mesmo tempo, encenada – sob a forma da ação missionária e do embate militar – e interrogada – por meio da apresentação de coordenadas – econômicas, políticas, sociais e culturais – que permitem compreendê-la historicamente. Ali onde, em Conrad, o coração das trevas permanece ocultado por sua contenção no espaço colonial, uma vez que Marlow decide mentir e, dessa forma, esconder o horror, no filme de Hondo, o desejo do protagonista de habitar a Europa depende do delírio de que o coração das trevas teria ficado para trás, enquanto a revelação da impossibilidade de realizar seu desejo equivale à desilusão e à descoberta do coração das trevas no cerne do espaço metropolitano.