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Terror e esplendor de espelhos: Like Someone in Love (2012), de Abbas Kiarostami

Obrigado, Abbas Kiarostami, pelo espelho do cinema e pelo cinema dos espelhos; por seu terror e por seu esplendor; em suma, por sua beleza.

Seria preciso começar agradecendo: obrigado, Abbas Kiarostami. Mas pelo quê?, alguém poderia se apressar a perguntar. A resposta é dupla: obrigado pelo espelho do cinema, que seus filmes renovam com a sutil intensidade de uma espécie de cuidado, um cuidado com as luzes e as sombras que formam (e deformam) o mundo; mas obrigado também pelo cinema dos espelhos, que alcança em alguns de seus filmes uma de suas formas mais sofisticadas, seja no fabuloso Close-up (1990), no delicado e difícil Shirin (2008), no indeciso e indecidível Copie conforme (2010) ou no decisivo Like Someone in Love (2012), que comento brevemente aqui.

Filmando novamente fora do Irã, Kiarostami realiza Like Someone in Love em Tóquio. Nas paisagens da metrópole japonesa, o diretor encena as relações entre suas personagens como relações em que a identidade mesma de cada uma está em questão a cada instante, a cada contexto, a cada interação. As identidades não se apagam, embora a possibilidade (aterrorizante ou esplendorosa) de sua decomposição sempre possível se insinue em alguns momentos, e a trama do filme orbita alguns dos pontos de ancoragem – sobretudo a memória e o sofrimento – que dão a qualquer identidade seu sentido mais ou menos passível de reconstrução.

A beleza do filme me parece residir, sobretudo, no passo lento de sua narrativa – não há pressa na apresentação das personagens, nem no desencadeamento dos conflitos, tampouco na travessia das paisagens ou na circulação dos olhares – e no cuidado de seus enquadramentos, nos quais os espelhos e os quadros que duplicam o mundo definem um motivo recorrente. Depois de apresentar Akiko e sua relação conturbada com Noriaki, o namorado (ou noivo, como ele pretende) com quem ela conversa ao telefone, sentada numa mesa de bar, onde está naquele instante pois trabalha como prostituta ou acompanhante de luxo, Kiarostami filma um diálogo entre a garota e o cafetão que quer enviá-la para um cliente a todo custo, ainda naquela noite, por meio do recurso convencional ao esquema de campo e contracampo, apenas para renová-lo, em seguida, ao inscrever campo e contracampo na mesma imagem por meio da superfície ao mesmo tempo reflexiva e transparente do vidro que separa o interior do bar e a noite ainda imprecisa que se anuncia fora dali.

Akiko deixa o bar e toma um táxi. Ouvimos com ela as mensagens que sua avó deixou na caixa postal de seu telefone celular, e alguma memória de sua vida se insinua, fragilmente, apenas para ser deixada de lado em decorrência da decisão de Akiko de recusar a tentativa da avó de encontrá-la: a garota chega a ver, de dentro do táxi, a avó que aguarda por ela numa praça, em vão. A identidade de Akiko assume uma forma mais complexa, ao mesmo tempo em que sua decisão equivale a uma recusa ao espectador, cujo conhecimento deverá permanecer fragmentado e incompleto de modo irremediável diante do mistério que ela representa. Alguns dos planos de Akiko no interior do táxi são filmados a partir de fora, revelando na superfície do vidro das janelas do carro os reflexos mais ou menos imprecisos das luzes e dos movimentos da cidade, como se a paisagem urbana, sua impessoalidade e sua inconstância pudessem explicar ou conter algo do mistério de sua vida pessoal.

Quando Akiko está, finalmente, no apartamento de Watanabe Takashi, o professor aposentado que solicitara seus serviços de acompanhante a Hiroshi, o motivo dos espelhos e dos quadros que duplicam o mundo alcança sua manifestação mais densa. A certa altura da conversa, Akiko afirma se reconhecer em uma pintura que decora uma das paredes do apartamento do professor. Novamente, uma fulguração da memória de sua vida permite entrever algo de sua identidade: ela recorda ter ganhado de seu tio uma reprodução da mesma pintura, quando ainda era adolescente; ela diz que seu tio tinha dito que tinha feito uma pintura dela; ela se lembra, enfim, de quando chegou em Tóquio e descobriu mais sobre a pintura e, portanto, sobre a mentira do tio. O professor complementa a experiência pessoal de Akiko em torno do quadro com seu discurso esclarecido, explicando que se trata de uma pintura intitulada Treinando um papagaio, de 1900 (de Chiyoji Yazaki). Ele elucida: a importância da obra reside no fato de propor uma abordagem estética característica da arte ocidental na representação de um motivo típico da arte japonesa.

Chiyoji Yazaki, 1900

O diálogo entre os dois – cuja interpretação não deve ser simplificada – conduz Akiko a se levantar e demonstrar para Takashi o sentido de semelhança que continua a se adivinhar entre ela e a mulher representada na pintura. No plano em que Kiarostami revela a semelhança possível e o fantasma especular que associa Akiko à pintura de Chiyoji Yazaki, o quadro aparece como uma duplicação do mundo – como se a história do tio de Akiko tivesse sido ou pudesse ter sido verdadeira, em algum momento – e, ao mesmo tempo, o mundo aparece como uma duplicação do quadro – Akiko como duplo, como cópia, como imagem de espelho. Dessa forma, é em torno de uma pintura que o motivo do espelho delimita seu terror insuportável – o apagamento da identidade na semelhança – e seu esplendor irredutível – a resistência do mundo como dessemelhança em relação ao espelho que o duplica. Se os espelhos são abomináveis, como queria Borges, pois multiplicam o número dos homens, o mundo e os homens – isto é, o mundo como espaço entre os homens, como construção e como experiência – resistem ao espelho e a sua abominação na medida em que interrompem ou perturbam a semelhança, sem destrui-la por completo.

Talvez duas das imagens mais belas dessa resistência do mundo ao terror dos espelhos, que paradoxalmente apenas o esplendor dos espelhos pode revelar, apareçam no filme como formas de inscrição do fora de campo no campo da imagem (embora essa descrição analítica seja incapaz de fazer justiça aos efeitos de sentido dessa forma de encenação).

Primeira imagem: depois do diálogo em torno da pintura, Akiko vai se deitar na cama de Takashi (que esperava ainda poder jantar, tomar um vinho e/ou conversar com ela – suas intenções não parecem ter qualquer sentido sexual); o professor se senta em uma cadeira e tenta conversar com ela, enquanto os movimentos de Akiko são refletidos, vagamente, na tela de uma televisão que está em cima da cômoda ao lado da cadeira. O reflexo de Akiko é frágil e resiste a sua captura especular (assim como sua figura resiste à semelhança com a pintura): o espelho da tela não é capaz de duplicá-la sem borrar, ao mesmo tempo, seus contornos; a semelhança que se adivinha em seus tênues movimentos está atravessada por uma dessemelhança esplendorosa, de sutil beleza.

Segunda imagem: no dia seguinte, Takashi leva uma Akiko ainda semi-adormecida até o exame que a estudante de sociologia (outra dimensão de sua identidade instável) deve fazer na universidade. Filmando a partir de fora do carro, Kiarostami registra ao mesmo tempo suas personagens no interior do carro e os reflexos distorcidos do mundo que o vidro do carro revela. Os reflexos giram, conforme o carro faz curvas, o céu e a paisagem urbana se decompõem em formas e em cores, a dessemelhança do mundo em relação a si mesmo emerge como uma irrecusável dimensão da experiência especular que Kiarostami destina a seus espectadores. A economia dos espelhos – a abominável multiplicação do número de homens a que se refere Borges – se abre numa proliferação de diferenças – a dispendiosa dádiva do novo que se pode descobrir no habitual, na paisagem banal, no óbvio e no trivial, no que parece apenas repetir-se, interminavelmente.

O encontro com o noivo de Akiko, que conduzirá ao desfecho abrupto da narrativa, oferece mais uma ocasião para uma oscilação dos termos em que se formulam as identidades e os papéis desempenhados por cada um em suas interações: inicialmente, Noriaki confunde Takashi com algum avô de Akiko, e essa confusão não chega a se resolver completamente: ela é negada, sem dúvida, pelo próprio Takashi, mas nenhuma informação ou narrativa vêm substituir o equívoco e a deriva abertos pela confusão inicial. O entrelaçamento das trajetórias de Akiko, Noriaki e Takashi, permeado pela deriva dos papéis que desempenham uns em relação aos outros, culmina na irrupção da violência como tentativa de fixar os papéis e de encerrar a deriva, como se fosse possível converter os espelhos em retratos, fixar os reflexos inconstantes que deslizam sobre suas superfícies como formas asseguradas da identidade a si do mundo – em suma, como se fosse possível aniquilar a dessemelhança a si (a diferença, a alteridade) que torna possível o movimento mesmo do mundo.