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A imaginação dos selvagens: American Sniper (2014), de Clint Eastwood

Crítica de American Sniper (2014), de Clint Eastwood, escrita por Marcelo Ribeiro e publicada originalmente na revista Janela.

Este texto foi publicado na revista Janela em 12 de março de 2015.

O cinema é uma continuação da guerra por outros meios

Um fantasma assombra o filme que Clint Eastwood dedica à figura de Chris Kyle, o atirador da força de operações especiais da Marinha dos Estados Unidos (os SEALs) que, durante seus quatro turnos na invasão do Iraque iniciada pelo governo de George W. Bush em 2003, matou pelo menos 160 pessoas. O filme reconstitui brevemente o itinerário que conduz Kyle ao alistamento militar, por um lado, e ao casamento com Taya, por outro, para em seguida oscilar entre um e outro contexto, de modo a estabelecer uma narrativa dupla. Nesse movimento oscilatório, por um lado, assistimos à trajetória que conduz Kyle a se tornar, em pouco tempo, “A Lenda”, num eixo dramático que articula as memórias de gênero do faroeste e dos filmes de guerra; por outro, acompanhamos as dificuldades da vida familiar de Kyle, cada vez mais atormentado pela experiência da guerra, num eixo dramático baseado na exploração de elementos melodramáticos.

Se o protagonista interpretado por Bradley Cooper não se esquece das vidas americanas que não pôde salvar, enquanto passa pelos períodos em que está longe do front, em meio aos afazeres cotidianos e às dificuldades de sua integração à vida familiar no Texas, a trama do filme imagina, em alguns momentos passageiros, as vidas dos selvagens que Kyle e seus companheiros pretendem aniquilar, em suas missões no “Velho Oeste do Oriente Médio”, como diz um dos soldados, ao dar as boas vindas ao grupo de Kyle, em uma das cidades conflagradas. Em meio ao faroeste de guerra que se desdobra nas sequências situadas no Iraque, as breves sequências de imaginação dos selvagens em suas vidas pessoais, familiares – como personagens que insinuam alguma individualidade (mesmo que o filme não chegue a revelá-la), e não meras figuras estereotipadas – introduzem fragmentos de um espelho melodramático em que os traços de algum lugar comum podem ser adivinhados.

Eis uma medida possível da diferença entre a perspectiva do protagonista e a perspectiva da narração fílmica (cuja disjunção é mais pronunciada em alguns momentos do filme, menos em outros, num jogo que uma análise mais atenta deveria poder reconstituir): enquanto os fantasmas que assombram Kyle são aqueles de seus companheiros, mortos nas batalhas contra os selvagens, cuja monstruosidade não deixa margem para dúvidas sobre a fronteira entre o Bem e o Mal, o fantasma que assombra a narração construída por Eastwood é aquele dos próprios selvagens (que aparecem, ao mesmo tempo, como um e como mais de um, como um aglomerado homogêneo de inimigos reais ou potenciais e como uma multiplicidade de personagens cuja singularidade seria preciso reconhecer ou imaginar, se isso fosse possível; nesse sentido, o fantasma dos selvagens é um só e muitos ao mesmo tempo). Efetivamente, a imaginação dos selvagens é o limite em que se evidencia a paradoxal fragilidade da força crítica de American Sniper.

Fundamentalmente, o fantasma que assombra American Sniper é o de uma impossibilidade, contra a qual o filme pode apenas fragilmente opor alguma resistência. Trata-se da impossibilidade de uma narrativa do ponto de vista dos selvagens, que apresentasse uma trama alternativa dos eventos (como o próprio Eastwood fez, em 2006, em relação ao conflito estadunidense-japonês, no contexto da Segunda Guerra Mundial, com o filme Cartas de Iwo Jima, que suplementa a perspectiva dos EUA, apresentada em A conquista da honra, com a perspectiva japonesa sobre a mesma batalha). De certa forma, então, o fantasma que assombra American Sniper é o de um filme que Eastwood jamais chegará a fazer, que poderia ter o título de Cartas de Fallujah e Bagdá.

Os momentos de imaginação dos selvagens – como os breves planos em que vemos o antagonista de Kyle, o sírio Mustafa (com quem o protagonista efetivamente duela, como num faroeste, embora por meio de uma tecnologia inusitada de armamentos), em um espaço familiar, ao lado de uma mulher que acalenta um bebê em seus braços – insinuam um deslocamento de perspectiva que nunca chega a se completar. Como fragmentos de um espelho melodramático, cuja totalidade nunca se torna visível, esses momentos permitem reconhecer formas e temas familiares na figura estrangeira dos selvagens, perturbando, parcialmente, o uso do termo, que é recorrente entre os SEALs. Esse uso é solidário à fé cristã professada por Kyle, que chegou a tatuar um de seus braços com uma cruz vermelha característica das vestes dos cruzados, na Idade Média, embora o filme não represente sua fé por meio desse elemento e reduza as instâncias de manifestação do discurso cristão a uma variedade restrita e a momentos associados, sobretudo, à sua vida familiar. Em vez de reiterar o sentido de exclusão absoluta e de diferença irredutível contido no termo “selvagem”, as imagens frágeis da vida dos selvagens, porque passageiras e indecisas, possibilitam adivinhar a existência de algum lugar comum, em que nenhuma ideia de selvageria seria capaz de assegurar a certeza convicta de qualquer pretensão à superioridade moral.

Se há, no filme, alguma dificuldade em sustentar a pretensão à superioridade moral que autoriza e legitima a guerra, sua potência crítica permanece concentrada em alguns momentos marcantes, cuja duração efetiva é pequena, embora seus efeitos interpretativos possam ser projetados sobre o restante do filme (e boa parte do que posso escrever aqui sobre esse filme decorre desse trabalho de projeção, que procura amplificar sua frágil potência crítica). Há, por exemplo, os poucos planos de imaginação da vida dos selvagens, já citados, que são a evidência mais significativa dos limites da representação da guerra, pois inscrevem, no filme, o ponto cego que define a perspectiva de seu protagonista e, em alguma medida, a perspectiva da própria narração fílmica.

Há também as instâncias de crise ligadas às relações familiares, como, por exemplo, no encontro furtivo de Kyle com seu irmão mais novo, Jeff, em que as certezas do irmão mais velho são abaladas, temporariamente, em sua chegada ao campo de batalha, pela perturbadora desilusão do mais novo, que está de saída. Há ainda as diversas sequências em que um Kyle atormentado enfrenta dificuldades para se adaptar à rotina familiar e ao cotidiano nos EUA. A certa altura, Kyle lembra ou alucina sons de tiros e explosões, enquanto permanece sentado em sua sala de estar, diante da tela da TV em que – depois de quebrada a expectativa de se encontrar a fonte dos ruídos em algum filme ou noticiário, uma vez que a tela da TV está desligada – a câmera vai buscar seu reflexo impreciso. Em outro momento, o protagonista está com seu filho em uma oficina mecânica e é reconhecido por um soldado que salvou, mesmo sem saber, e que lhe agradece por isso. Enquanto o homem se agacha para afirmar o heroísmo de Kyle para seu filho, o protagonista permanece lacônico em seu visível desconforto (num dos momentos mais interessantes da atuação de Bradley Cooper).

Há, finalmente, a opacidade condensada pelo letreiro que anuncia a morte de Kyle, de modo impreciso, no final do filme, sem conseguir atribuir-lhe um lugar na trama ficcional, para dar passagem, em seguida, a imagens documentais da consagração nacionalista do atirador mais letal da história estadunidense, no longo velório em que seu caixão foi conduzido numa imensa carreata por ruas ocupadas por bandeiras e pessoas que prestavam-lhe suas homenagens. A morte de Kyle ocorreu durante a produção de American Sniper, e sua inscrição no filme é ambivalente. Depois da informação de que Kyle foi assassinado por um dos veteranos de guerra com que entrou em contato, num campo de tiros em que assistimos à sua recuperação parcial por meio da tentativa de ajudar veteranos, o filme interrompe sua narração ficcional e apresenta uma sequência de planos documentais. Ao se recusar a encenar a morte de Kyle, Eastwood parece afirmar seu respeito ao indivíduo, à sua família e aos seus amigos, com quem vinha trabalhando na produção do filme. Se ela demonstra alguma forma de respeito ao morto (um respeito que terá sido recusado, de saída, a qualquer um dos selvagens imaginados no filme), a inscrição fílmica da opacidade do real à ficção, que se condensa no letreiro e se desdobra nas imagens documentais, perturba o fechamento simbólico da narrativa, ao chamar atenção para o excesso de real que escapa de suas tramas.

Uma das principais formas desse excesso de real é, igualmente, uma das condições de possibilidade da encenação limitada da guerra que assistimos no decorrer de American Sniper: a cooperação institucional e pessoal dos militares estadunidenses. Sem reconhecer a cooperação entre Hollywood e o Pentágono que torna possível a representação da guerra no filme de Eastwood, tanto sua potência crítica quanto suas irredutíveis limitações permaneceriam ignoradas ou mal compreendidas. A imaginação dos selvagens e o lugar comum fragmentado do espelho melodramático inscrevem, na trama do filme, a impossibilidade de uma narrativa do ponto de vista dos selvagens, que decorre, fundamentalmente, do fato de que American Sniper faz do cinema uma continuação da guerra por outros meios. O filme de Clint Eastwood participa da guerra e, embora procure interrogar alguns de seus efeitos, prolonga-a como jogo de cena. Nesse jogo, não há lugar para os selvagens, como reiteram Kyle e seus companheiros enquanto colocam em movimento o aparato bélico estadunidense, como num desfile da força militar diante dos espectadores; nessa cena, a imaginação dos selvagens representa a impossibilidade de narrar a guerra do ponto de vista dos vencidos, uma vez que sua perspectiva está destinada a ser reduzida, pela eficiência daquele aparato bélico, a uma condição inimaginável.