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Ver junto, 1: identidade, época, perspectiva

Dia 20/09, apresento parte da minha pesquisa sobre imagem e direitos humanos no Colóquio de Fotografia da Bahia (página arquivada). No painel 2, participo da promissora programação do evento com uma discussão sobre os modos de ver e de rever a fotografia em filmes recentes que abordam o genocídio indígena em andamento no Brasil.

O título provisório da comunicação é “Ver junto: fotografia, cinema e as imagens que faltam do genocídio indígena em andamento no Brasil”. O resumo expandido que apresentei e que acabou sendo selecionado é o seguinte:

Um dos motivos recorrentes das mais recentes abordagens fílmicas do genocídio de sociedades indígenas na história do Brasil é a figura dos espectadores indígenas – por um lado, olhando para si mesmos; por outro; olhando para o mundo. Em diferentes filmes recentes, os cotidianos e as cosmovisões de diferentes povos indígenas do Brasil, assim como as evidências do genocídio em andamento de que são o alvo, emergem de um arquivo multimídia – que inclui fotografias pessoais e fotografias publicadas em jornais e revistas, gravações em filme e em vídeo etc.

Por meio de uma leitura de Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006), Corumbiara (Vincent Carelli, 2009), Taego Ãwa (Henrique Borela e Marcela Borela, 2015), e Martírio (Vincent Carelli, co-dir.: Ernesto de Carvalho and Tita, 2016), assim como de uma consideração de parte do corpus emergente de filmes indígenas que têm sido produzidos em anos recentes, em projetos como o Vídeo nas Aldeias, entre outros, este ensaio argumenta que a figura dos espectadores indígenas implica um movimento entre imagens e constitui, dessa forma, parte crucial dos modos de endereçamento dos filmes comentados, convidando cada espectador a uma experiência de partilha do olhar. O estabelecimento de relações entre imagens de diferentes mídias, sobretudo entre a fotografia e o cinema, permite que os cineastas investiguem a história do genocídio das sociedades indígenas. Se a intermidialidade condiciona os modos de abordagem da história nos filmes comentados, qualquer tentativa de reconstituir a história do genocídio permanece assombrada por suas imagens que faltam.

Efetivamente, por um lado, parte das condições de possibilidade dos filmes está relacionada a procedimentos de apropriação e de ressignificação de imagens previamente existentes, que podem ser comparados ao que Bolter e Grusin denominam “remediação” (remediation). Assim, a remediação define uma parte crucial da relação ontológica dos filmes com a realidade e o mundo, além do realismo atribuído à fotografia, ao filme e ao vídeo como mídias (re)presentacionais. Por outro lado, os modos de endereçamento dos filmes e, especialmente, suas estratégias de encenação e suas formas de montagem exploram imagens fotográficas, cinematográficas e videográficas – isto é, o movimento da intermidialidade – como parte de um processo inventivo e aberto de imaginação do comum (no enquadramento étnico das identidades indígenas particulares e, ao mesmo tempo, no enquadramento de comunidades mais amplas, inclusive do que se pode denominar, com base nos debates em torno de princípios de direitos humanos, comunidade da humanidade).

Dessa forma, além do movimento entre imagens de diferentes mídias que caracteriza a relação ontológica dos filmes com a realidade e o mundo, é preciso reconhecer o papel das imagens que faltam do genocídio – um motivo multifacetado na história da relação entre as imagens técnicas, como a fotografia e o cinema, e diferentes contextos históricos de genocídio – na definição de sua relação fantasmagórica com a realidade e o mundo – uma relação que Derrida talvez nos conduzisse a pensar como parte do que ele denominava, de modo intraduzível, “hauntologie”. Nesse duplo movimento, entre a ontologia do real que habita as imagens e a fantasmagoria que as assombra, a experiência de ver junto se torna uma experiência de partilha do olhar com os vivos (que são, em parte, sobreviventes) e com os fantasmas dos desaparecidos.

Argumento que os filmes introduzem uma série de imagens suplementares no espaço vazio das imagens que faltam do genocídio dos povos indígenas no Brasil. A criação dessas imagens suplementares decorre do que denomino montagem anarquívica e de sua potência cosmopoética: uma montagem que desorganiza, desloca e transforma o arquivo multimídia do genocídio indígena por meio de procedimentos de fabulação (a encenação do massacre e do itinerário de Carapiru como sobrevivente e como espectador do mundo diante da televisão, no filme de Tonacci; a performance da demarcação da terra e os Ãwa como espectadores no filme dos Borela) e de registro direto (a busca de evidências de genocídio em Corumbiara e Martírio, de Carelli; as evidências da vida comum que se pode vislumbrar nos filmes de Tonacci e dos Borela). Num quadro interpretativo mais amplo, a análise do modo como a montagem anarquívica articula imagens de diferentes mídias para suplementar as imagens que faltam do genocídio indígena pode também lançar alguma luz sobre os processos de reinvenção das identidades indígenas e sobre a projeção de uma comunidade transcultural da humanidade, a partir das formas de imaginação do mundo que a figura dos espectadores indígenas convida cada espectador dos filmes a ocupar, temporária e provisoriamente, convertendo o filme numa experiência de ver junto, de partilha do olhar, que sustenta a imaginação incipiente de uma comunidade por vir.

Para começar, o título: o que significa “ver junto”?

O título “Ver junto” condensa uma constelação de problemas que minha leitura dos filmes pretende circunscrever. São problemas de diferentes níveis de pertinência, que podem ser associados a três instâncias da experiência do comum e da partilha de identidade e diferença que o constitui.

Em primeiro lugar, é preciso circunscrever o comum do reconhecimento indígena, que está relacionado à construção, à atribuição e à reivindicação de identidades indígenas específicas e que aparece com frequência, nos filmes, a partir da experiência de ver junto. Aqui, a figura dos espectadores indígenas aparece diante de imagens fixas e em movimento que representam, de alguma forma, sua própria imagem, devolvendo-a na mesma medida em que a inventam como a imagem de uma coletividade, de uma comunidade. Ver junto é ver-se junto a si e aos seus, como quem se vê numa espécie de espelho.

Ao mesmo tempo, é preciso circunscrever o comum do pertencimento histórico, que está relacionado ao movimento suplementar de inscrição da identidade numa teia de diferenças, ao processo de aparição das comunidades indígenas em meio a outras comunidades, a partir delas e à diferença delas, com as quais partilham, entretanto, uma época, uma teia de relações, uma história. Aqui, o espectador indígena aparece como espectador do mundo, isto é, de imagens fixas e em movimento que representam o espaço intermediário da co-habitação dos diversos, das comunidades e das alteridades. Ver junto é ver-se junto a outros, e revela-se que é a partir dos outros e de suas ações, da alteridade e de suas imagens irredutíveis ao mesmo, que se torna possível o reconhecimento de si e dos seus.

Finalmente, naquela que me parece crucial pensar como uma terceira instância da experiência do comum e da partilha de identidade e diferença que o constitui, é preciso circunscrever o comum da experiência da imagem nos filmes e da mediação espectatorial que a delimita. Aqui, qualquer espectador deve se situar em relação à interpelação de ver junto que define o modo de endereçamento dos filmes e seu uso das imagens fotográficas, cinematográficas, videográficas etc. que registram o genocídio indígena em andamento no Brasil. À partilha da identidade e à partilha da época deve-se acrescentar essa partilha da perspectiva, tanto em relação ao passado quanto em relação ao futuro, que singulariza, nos filmes analisados, a experiência do cinema, da fotografia e da vida das imagens.

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Se puderem comentar com críticas, sugestões, dúvidas, indicações etc., compartilhar com suas redes ou diretamente com pessoas que talvez se interessem, agradeço muito. Esta publicação é parte das minhas tentativas de tornar e manter públicas minhas atividades de pesquisa como docente de uma universidade pública federal. 

2 respostas em “Ver junto, 1: identidade, época, perspectiva”

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