Viagem à Lua é o primeiro título apresentado no livro 1001 filmes para ver antes de morrer. A obra está em domínio público e pode ser facilmente encontrada, em diversas versões:
- em preto e branco com comentários em voz over
- restaurada em preto e branco
- colorida restaurada em 2010
Estética: o ilusionismo do teatro ao cinema
Uma das dimensões mais inquietantes do cinema é, sem dúvida, o ilusionismo: não tanto a sua suposta capacidade de enganar os sentidos, que de fato é menor do que se costuma supor, mas aquela potência de ilusão que acolhe um fascínio mágico no cerne do dispositivo e de seu funcionamento maquinal. Dos efeitos especiais que saturam as grandes produções atuais até as experiências artísticas de vanguarda que exploram possibilidades menos redundantes, o ilusionismo aparece como uma herança despedaçada entre seus próprios herdeiros, que pulverizam sua fortuna numa infinidade de instâncias. A história do cinema é em parte a história da proliferação de herdeiros e da disseminação da herança do ilusionismo.
Para reunir os traços do ilusionismo numa genealogia comum, é preciso partir da figura de Georges Méliès (1861-1938). Mágico do Theatre Robert-Houdin, em Paris, conta-se que Méliès ficou fascinado pelas folhas que se mexiam no fundo da cena do “Repas de bébé” (Refeição de bebê) registrado pelo cinematógrafo Lumière, em 1895. Afinal, era como se o cenário estivesse se mexendo. Mesmo se considerarmos que esta é mais uma das narrativas mitológicas das origens do cinema, em sua trama se condensam alguns dos elementos mais significativos da obra cinematográfica de Méliès, embora alguns deles nem sempre sejam notados com a devida atenção: a importância dos detalhes; a intensidade visual de seus quadros (aparentemente tão simples em sua teatralidade); a hospitalidade às derivas do olhar que marca suas vistas cinematográficas.
Em Viagem à Lua, de 1902, o ilusionismo opera por meio das técnicas mais diversas para entrelaçar a narrativa. O enquadramento frontal de quase todos os planos marca a herança teatral que Méliès suplementa com inúmeras trucagens – procedimentos de intervenção no material fílmico para modificar o registro e obter efeitos inusitados, como a transição por fusão (marcando uma elipse espacial e/ou temporal, num procedimento frequente ainda hoje), sobreposição ou sobreimpressão de imagens (uma possibilidade que será explorada no cinema experimental e, sobretudo, na videoarte) e o corte em que desaparece um elemento da cena, como num passe de mágica. Assim, por meio das trucagens, Méliès exacerba a dimensão cinematográfica do ilusionismo, cujas raízes estão no teatro popular que o inspira do começo ao fim.
Seja na reunião dos astrônomos antes da viagem, na construção da nave que os levará à lua, ou nas paisagens que descobrem por lá, é possível identificar a estrutura de um palco e uma série de dispositivos cênicos teatrais: pinturas servindo como paisagens nos fundos falsos dos cenários, espaços e níveis diferenciados de ação para orientar o olhar espectatorial, entre outros. Sobre a reserva de recursos teatrais, operam formas emergentes da linguagem cinematográfica. Por um lado, a montagem nunca recorta uma cena em fragmentos menores mas interligados: a cada cena corresponde uma sequência homogênea de planos, sem modificação de ponto de vista, de enquadramento ou de distância. Por outro lado, a continuidade das cenas é entrecortada pelas trucagens que multiplicam os planos para abrigar os efeitos ilusionistas mais variados: os telescópios dos astrônomos se transformam em bancos quando o professor vai apresentar seus planos no começo; os selenitas explodem quando golpeados; etc.
Na tecelagem dos elementos teatrais e dos elementos cinematográficos, é importante lembrar de um elemento híbrido crucial, que marca as exibições de muitos filmes nos primeiros tempos do cinema: o comentário para explicar as imagens, muitas vezes a partir de um narrador ou apresentador presente na sala de exibição. Numa das versões disponíveis de Viagem à Lua, ouvimos a voz (extemporânea) de um narrador que dá nome aos personagens, explica situações e direciona nosso olhar. A confusão muitas vezes toma conta dos quadros, tornando difícil saber onde está acontecendo a ação principal da narrativa – como no momento em que os astrônomos observam a moldagem do canhão que enviará sua nave, como um projétil, até a lua: afinal, devemos olhar para o fundo, onde ocorre a moldagem, ou para os astrônomos em primeiro plano, mexendo-se freneticamente? Diante do quadro confuso, o comentário (mesmo que extemporâneo) constitui uma âncora para a deriva do olhar, orientando sua navegação sobre a superfície inquieta das imagens.
Gênero: a ficção científica da literatura ao cinema
Embora Viagem à Lua possa ser considerado um pioneiro na exploração cinematográfica da ficção científica, na medida em que articula uma série de suas convenções temáticas (como viagens espaciais, naves e seres extraterrestres), as reservas mitológicas sobre as quais se ergue se entrelaçam de forma especialmente fantasiosa.
Se nos fiamos às explicações do comentário que acompanha essa versão, são, em primeiro lugar, personagens que se encontram: ao professor Barbenfouillis, interpretado pelo próprio Méliès, juntam-se o famoso Nostradamus (em cujas previsões se encontram as viagens à lua), Alcofribas (cujo nome remete ao pseudônimo utilizado por François Rabelais, um anagrama de seu nome: Alcofribas Nasier), Omega, Micromegas (cujo nome intitula um conto de Voltaire de 1752 e designa ali um ser de outro planeta que visita a Terra) e Parafaragaramus (se vocês souberem alguma outra informações sobre esses nomes, principalmente Omega e Parafaragaramus, escrevam um comentário, por favor); além disso, no decorrer da narrativa, aparecem por exemplo Febo (o nome romano de Apolo) e Saturno (o nome romano de Cronos). Aqui, encontramos algumas pistas interessantes. Destaco uma que me parece crucial para entender a linhagem em que se inscreve a obra de Méliès: a referência a François Rabelais que é legível, às margens, no nome de Alcofribas, pode ser entendida como um traço da sensibilidade carnavalesca que a obra de Rabelais representa e que está no cerne da obra de Méliès, com suas inversões e jogos que deslocam as ordens estabelecidas (sobre a questão do carnaval na obra de Rabelais, remeto ao livro clássico de Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais).
São também, em segundo lugar, estruturas narrativas que se repetem: aos eventos sobrenaturais que estão na base da narrativa, acrescentam-se uma série de pequenas brincadeiras, como a transformação do guarda-chuva de um dos astrônomos em um cogumelo que cresce enormemente ou as explosões em que se acabam os selenitas; além disso, os selenitas constituem uma figura mitológica crucial para a compreensão da narrativa, na medida em que constituem uma forma específica de imaginação da alteridade. Uma das dimensões da ficção científica está relacionada justamente às formas de imaginação da alteridade que marcam cada época da história de uma sociedade. Quando a viagem espacial está em jogo, os alienígenas e os extraterrestres aparecem com frequência como figurações do outro, do diferente em relação aos padrões supostos de uma sociedade específica – seja uma diferença histórica (entre dois momentos da “mesma” sociedade), seja uma diferença cultural (entre duas sociedades diferentes), seja uma articulação entre ambas.
Em Viagem à lua, há inúmeros elementos caracteristicamente coloniais na representação dos selenitas: as lanças que bradam ferozmente contra os invasores terrestres, o figurino que os singulariza com roupas e ornamentos tribais genéricos etc. Na ficção científica em geral, em Viagem à lua em especial, a representação da diferença resulta de uma transformação dos termos culturais que definem o presente – no tempo de Méliès, a colonização da África está em seu apogeu e o encontro com a alteridade colonial marca a sensibilidade europeia em geral – em figurações de outro tempo e de outro espaço – a lua e seus habitantes estranhos, ao mesmo tempo frágeis e ameaçadores, os selenitas.
Nesse sentido, torna-se ainda mais impactante uma sequência de Viagem à lua que durante muito tempo se considerou perdida. Felizmente, depois de ter sido encontrada uma versão mais completa do filme (embora ainda pareça faltar alguma coisa no seu desfecho), hoje podemos ver a sequência a que me refiro nos DVDs do box “Georges Méliès – First Wizard of Cinema (1896-1913)”, lançado em 2008. Selecionei quadros dessa sequência e os inseri ao final do texto. Ela se passa após o final da versão disponível para download no início. Depois do retorno dos viajantes, uma multidão os recebe com aclamação e, em meio às comemorações e festas, o selenita que voltou junto com a nave aparece levado por um homem através de uma espécie de coleira, como um animal. A comparação entre o selenita como figura da alteridade e o animal não é, contudo, apenas de ordem metafórica: uma das instituições mais difundidas no Ocidente na virada do século XIX para o século XX consistia no que se pode chamar de zoológico humano e se dedicava à exibição de “espécimens” das mais diversas sociedades encontradas pelos euro-ocidentais em sua expansão colonial ao redor do mundo, em especial na África e na Ásia.
Se, por um lado, a ficção científica parece predominar como gênero, organizando os elementos ilusionistas e carnavalescos do espetáculo, por outro lado Viagem à lua não se deixa reduzir às convenções do gênero e suas amarras permanecem frouxas. Em sua trama, o filme abriga uma série de formas inquietantes que possibilitam leituras diferentes. Há espaço, por exemplo, para interpretações de inspiração surrealista e até mesmo dadaísta – enfatizando as descontinuidades e os efeitos de choque, as inconsistências lógicas de sua construção dramática e os deslizamentos de significação de suas representações. Se Viagem à lua continua fascinante, é porque fornece referências a diferentes posições do espectro artístico e audiovisual, da Hollywood dos efeitos especiais às vanguardas que fazem repercutir sobre o cinema as marteladas destruidoras da arte moderna e contemporânea. Mesmo assim, há algo que escapa, um vestígio que resta inassimilável aos nossos tempos e a qualquer ecletismo. Na fratura que se abre entre as convenções de gênero da ficção científica e os recursos estilísticos e estéticos do ilusionismo, Viagem à lua mantém viva uma faísca de estranheza que instiga, ainda hoje, as derivas do olhar.
Post originalmente publicado em 12 de maio de 2011 e atualizado para essa versão.