1. A arte de viver
Uma das séries de transformações mais ambivalentes que as formas de reprodução técnica – a fotografia, o cinema, o vídeo e as modalidades de sua convergência digital – imprimem na experiência humana está relacionada aos fantasmas que nos assombram sob o signo do sagrado, aos mitos e aos ritos que elaboramos para conjurá-los. Na sua reflexão sobre a história da sensibilidade e as transformações que a reprodutibilidade técnica impõe sobre a arte, Walter Benjamin abriga uma interrogação do sagrado em dois conceitos associados: o valor de culto e a aura. Para Benjamin, se as obras de arte puderam se definir tradicionalmente por seu valor de culto (mesmo quando não se associam a contextos especificamente religiosos), a época da reprodutibilidade técnica que a fotografia e o cinema delimitam se caracteriza pela predominância do valor de exposição na definição das obras de arte. Ao crescimento da importância do valor de exposição corresponde o declínio da aura das obras de arte. Em vez da aura, associada à unicidade e a um efeito de distanciamento que talvez fosse possível associar à noção de sublime, o que marca as obras de arte a partir da fotografia e do cinema é o que se pode chamar de exposabilidade, associada à reprodução em massa e a um efeito de aproximação que, embora pareça banal, define as formas dominantes de sensibilidade desde a modernidade.
O sagrado se define sempre em relação ao profano, delimitando uma estrutura de separação. Enquanto uma série de discursos que assumem a forma de encantamentos e de mitos opera para delimitar a fronteira, uma série de práticas que assumem a forma de festas e de rituais opera para regrar as passagens. O que marca a época da reprodutibilidade técnica é um deslocamento da fronteira entre sagrado e profano que permite – e isso é algo que fascina Benjamin, como uma promessa cuja potência seu pensamento não cessa de adivinhar na fotografia e no cinema – que a obra de arte seja retirada da esfera de separação em que esteve tradicionalmente encerrada, que a investe de valor de culto e aura, e devolvida à esfera do uso comum, como reprodução. A profanação da arte equivale, na modernidade, à afirmação de sua condição originária de expropriedade e é nessa afirmação, amplificada a tal ponto que chega a abraçar toda a experiência, que os aparelhos fotográfico e cinematográfico encontram aquilo que pode ser denominado sua potência sensível. Nas suas superfícies, a arte e a vida se tornam imagináveis, em sua disjunta comunhão, como arte de viver.
2. O espetáculo da mercadoria
Quando a arte e a vida se inscrevem na zona de indeterminação a que a reprodutibilidade técnica as destina, a transformação que atravessa o sagrado se revela em toda sua ambivalência. À profanação da arte que a devolve à esfera do comum por meio da afirmação de sua condição originária de expropriedade corresponde um movimento de reinvestimento da estrutura de separação que define o sagrado, na cisão entre valor de uso e valor de troca que define a forma mercadoria. Quando a arte e a vida se indiferenciam e os aparelhos fotográfico e cinematográfico tornam imaginável a arte de viver, a vida como arte, a mercadoria busca (re)capturar a arte e a vida no dispositivo do capital.
Nada melhor do que o complexo mítico-ritual que coloca em movimento o cinema para descortinar o espetáculo da mercadoria. Os astros dos filmes se convertem em personagens redentores diante de um cotidiano que parece estéril, insignificante, nutrindo com suas figuras toda uma mitologia do capital. Entrecortando o cotidiano ordinário, a ida ao cinema se converte num ritual em que a sala escura se torna o abrigo do extraordinário. (Seria preciso traçar uma genealogia dos vínculos entre a sala escura do cinema e o templo solene da igreja, desde a emergência do cinema como espaço ritual até as recorrentes transformações de salas de cinema tradicionais em igrejas, um fenômeno que tem sido frequente nas últimas décadas.) No cinema, a potência sensível do comum se encontra incessantemente capturada pelo espetáculo da mercadoria. A arte e a vida se tornam (quase) inimagináveis, porque contidas nas formas fixas de um imaginário que se pretende improfanável em seu brilho plástico.
3. O cinema depois da televisão
Na conversa entre Jean-Luc Godard e Woody Allen que pode ser acompanhada a partir do tempo de 8 minutos e 36 segundos desse vídeo, da qual transcrevi alguns trechos, os cineastas discutem as diferenças entre a experiência cinematográfica e a experiência televisiva, tentando compreender o tipo de influência que a televisão tem exercido sobre a prática cinematográfica.
Woody Allen: Quando eu cresci, era algo maravilhoso sair do sol, que eu detesto, e ir para uma sala escura, evitar o calor e a luz… e só se sentar e de repente ser transportado para qualquer lugar […]. E era sempre decepcionante para mim, quando eu saía do cinema, de volta para a rua, a luz batia em mim e estava de volta à realidade. […] É um lugar para fugir, para deixar de lado as terríveis verdades da realidade.
Jean-Luc Godard: Você tem o sentimento de que algo mudou…
WA: Em termos de… televisão?
JLG: Talvez fazer filmes por causa da televisão, da maneira como os filmes são recebidos ou exibidos pela televisão.
WA: Eu pessoalmente penso que a televisão é uma terrível influência sobre o cinema. Absolutamente terrível. Eu sei de muitos jovens que veem filmes pela primeira vez na televisão. É criminoso para mim… […] Eu penso que isso está mudando os hábitos dos espectadores, certamente nos Estados Unidos. As pessoas ficam em casa, eles alugam fitas, alugam dez, doze fitas no final de semana, e ficam em casa assistindo. Eu acho que isso tem também um elemento de fuga, de uma certa maneira. Quando você liga a televisão, você fica hipnotizado… É só que não tem o mesmo elemento de fuga que ir numa sala de cinema. Quando eu era jovem, ir ao cinema era entrar num mundo diferente […]. Na televisão, você só coloca a fita e… isso distrai você, eu penso que sim. Mas é uma experiência muito menor, mais trivial. […]
Godard concorda com Allen, suplementando seus argumentos com uma comparação curiosa: para ele, enquanto ir ao cinema é de alguma forma se liberar do pai e da mãe, de suas proibições e permissões, a experiência de assistir a televisão envolve de alguma forma um retorno à mãe e ao pai, na convivência da sala de estar ou mesmo no fato de se assistir aos mesmos programas em aparelhos diferentes. Allen emenda: “O ritual é diferente”.
4. O sagrado comum
A certa altura de 2666, de Roberto Bolaño, Charly Cruz profetiza para Oscar Fate o desaparecimento das salas de cinema:
As únicas salas de cinema que preenchiam uma função, disse Charly Cruz, eram as velhas, lembra?, aqueles teatros enormes onde o coração ficava apertado quando se apagavam as luzes. Essas salas eram lindas, eram os verdadeiros cinemas, o que havia de mais parecido com uma igreja, tetos altíssimos, grandes cortinas vermelho grená, colunas, corredores com velhos carpetes gastos, palcos, lugares de plateia e galeria ou camarote, edifícios construídos nos anos em que o cinema ainda era uma experiência religiosa, cotidiana mas religiosa, e que pouco a pouco foram sendo demolidos para edificar bancos ou supermercados ou multissalas, com telas pequenas, espaço reduzido, poltronas supercômodas. No espaço de uma velha sala de verdade cabem as sete salas reduzidas de um multissalas. Ou dez. Ou quinze, depende. E não há mais experiência abismal, não existe a vertigem antes do início de um filme, ninguém mais se sente sozinho dentro de um cinema multissalas. Depois, pelo que Fate lembrava, pôs-se a falar do fim do sagrado.
O fim havia começado em algum lugar, para Charly Cruz tanto fazia, talvez nas igrejas, quando os padres deixaram de lado a missa em latim, ou nas famílias, quando os pais abandonaram (aterrorizados, pode crer, bróder) as mães. Logo o fim do sagrado chegou ao cinema. Derrubaram os grandes cinemas e construíram caixotes imundos chamados multissalas, cinemas práticos, cinemas multifuncionais. As catedrais caíram sob a bola de aço das equipes de demolição. Até que alguém inventou o vídeo. Uma televisão não é a mesma coisa que uma tela de cinema. A sala da sua casa não é a mesma coisa que uma velha plateia quase infinita. Mas, se você observar com cuidado, é o que mais se parece. Em primeiro lugar porque por meio do vídeo você pode ver um filme sozinho. Você fecha as janelas de casa e liga a tevê. Põe o vídeo e senta numa poltrona. Primeiro requisito: estar sozinho. A casa pode ser grande ou pequena mas, se não houver mais ninguém, toda a casa, por menor que seja, de alguma maneira fica maior. Segundo requisito: preparar o momento, isto é, alugar o filme, comprar a bebida que vai tomar, o tira-gosto que vai comer, determinar a hora em que você vai sentar na frente da tevê. Terceiro requisito: não atender o telefone, ignorar a campainha da porta, estar disposto a passar uma hora e meia ou duas horas ou uma hora e quarenta e cinco minutos na mais completa e rigorosa solidão. Quarto requisito: ter à mão o controle remoto, para o caso de você desejar ver mais de uma vez uma cena. E é só. A partir desse momento tudo depende do filme e de você. Se tudo correr bem, que nem sempre corre bem, você vai estar outra vez na presença do sagrado. Você enfia a cabeça dentro do seu próprio peito, abre os olhos e olha, soletrou Charly Cruz.
Se o “fim do sagrado” se manifesta, no cinema, sob as formas da proliferação dos “caixotes imundos chamados multissalas” e da destruição das salas de cinema que eram “o que havia de mais parecido com uma igreja”, como “catedrais”, o ressurgimento do sagrado se torna possível, segundo Charly Cruz, com o vídeo. Mas que experiência “abismal“, que “vertigem“, que “presença do sagrado” se tornam possíveis com o vídeo? Os requisitos parecem contundentes: a solidão que torna maior a casa, qualquer casa; a preparação do momento; o isolamento comunicacional visando a imersão no filme; o controle remoto que suplementa a imersão com a possibilidade de intervenção no ritmo do filme, abrindo o espaço de um jogo cujas possibilidades ainda permanecem por descobrir e explorar. Se há sagrado na experiência do vídeo, trata-se de um sagrado transformado pelo esvaziamento radical da aura, pelo esgotamento absoluto do valor de culto e pela potência da imaginação.
Para compreender os sentidos dessa transformação do sagrado – em que está em jogo a passagem da época moderna, marcada pelo chamado “desencantamento do mundo”, para uma época ainda a nomear – é preciso reconhecer que a experiência do vídeo se desenrola sobre o pano de fundo do espetáculo da mercadoria. Quando a estrutura de separação que constitui o sagrado se inscreve no cerne da forma que engloba nossa experiência vital, a tarefa política da profanação – que visa devolver o separado à esfera do uso comum e à potência sensível que a caracteriza – se encontra diante de um obstáculo imponente. Como escreve Giorgio Agamben em seu “Elogio da profanação”:
Poderíamos dizer então que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião. Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano. Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo. […] Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente Improfanável. […] É possível, porém, que o Improfanável, sobre o qual se funda a religião capitalista, não seja de fato tal, e que atualmente ainda haja formas eficazes de profanação. Por isso, é preciso lembrar que a profanação não restaura simplesmente algo parecido com um uso natural, que preexistia à sua separação na esfera religiosa, econômica ou jurídica. A sua operação — como mostra com clareza o exemplo do jogo — é mais astuta e complexa e não se limita a abolir a forma da separação para voltar a encontrar, além ou aquém dela, um uso não contaminado. Também na natureza acontecem profanações. O gato que brinca com um novelo como se fosse um rato — exatamente como a criança fazia com antigos símbolos religiosos ou com objetos que pertenciam à esfera econômica — usa conscientemente de forma gratuita os comportamentos próprios da atividade predatória (ou, no caso da criança, próprios do culto religioso ou do inundo do trabalho). Estes não são cancelados, mas, graças à substituição do novelo pelo rato (ou do brinquedo pelo objeto sacro), eles acabam desativados e, dessa forma, abertos a um novo e possível uso.
A generalização da estrutura de separação que cria o Improfanável constitui o espetáculo da mercadoria, diante do qual a experiência do vídeo pode projetar as luzes tremeluzentes e as sombras imprecisas do que Charly Cruz chama de sagrado. Diante do Improfanável que o capitalismo pretende criar, plasmado na forma mercadoria e no imaginário do espetáculo (que torna a arte de viver inimaginável), a experiência do sagrado descrita por Charly Cruz recupera a potência da imaginação na medida em que reintroduz, no abismo da solidão do home video, a possibilidade vertiginosa do jogo (representada sobretudo pelo controle remoto). Em vez de constituir uma mercadoria fechada, um fetiche intocável e improfanável em seu ritmo, em sua duração e em sua experiência, o filme se abre para novos e possíveis usos por parte do espectador, que “enfia a cabeça dentro do seu próprio peito, abre os olhos e olha”. No passo desse jogo solitário mas povoado por uma multidão de fantasmas – em que nem sempre corre tudo bem – talvez seja possível começar a imaginar a profanação do Improfanável e – na insinuação de um sagrado comum que reencanta o mundo – a arte de uma vida possível.