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La Flor: do complexo de múmia à câmera escura

A quem interessar possa, eis algumas palavras sobre La Flor, de Mariano Llinás, minutos depois de concluir a primeira travessia, em ritmo irregular, das suas imagens.

Tudo se passa como se, no início, estivesse o complexo de múmia, que é, além do tema de uma releitura da tradição dos filmes B (no episódio I), o que define a ontologia da fotografia e se desdobra, no registro da duração do movimento, com o cinema (cf. André Bazin).

No final, é como se restasse apenas retornar à câmera escura (no episódio VI, recordando a operação dupla do aparelho, entre a captura das imagens mundo no sistema da perspectiva que é sua arché (seu princípio simbólico, seu começo histórico), de um lado, e o que sobrevive, principalmente, magicamente, pictoricamente, na fantasmagoria anárquica do delírio e de suas constelações móveis, de outro.

Entre um ponto e outro desse itinerário, atravessamos as múltiplas modulações de um desejo de fabulação, que, sempre muito consciente de si, de suas referências e de seus horizontes, experimenta com imagens e histórias do cinema e da literatura, da música e da pintura. A imagem matricial da flor parece organizar a estrutura, mas, como as árvores do episódio IV, faz proliferar o mistério como mil buracos.

É uma experiência deslumbrante mesmo em suas irregularidades eventuais, no desafio opaco da sua duração assim como na intensidade das músicas e silêncios que entrecortam seu fluxo. É um filme maravilhosamente impuro, uma obra literária que me lembra de alguma forma 2666, de Roberto Bolaño, e Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, um híbrido que não se contenta com a mistura, porque está interessado em todas as formas de reconhecer a beleza do mundo.