Fala-se muito em dar voz ao outro, sem que se interrogue os sentidos desse gesto e da relação que ele constitui. A literatura antropológica registra amplamente a ligação entre dádiva e obrigação, entre dar presentes e obter reconhecimento e prestígio social, entre receber presentes e submeter-se à autoridade de quem os ofereceu (a ponto de se estabelecer toda uma outra noção de economia, nesse contexto, uma economia atravessada por um elemento aneconômico, uma vez que sua operação é agonística, pois a circulação de objetos em seu interior permanece inseparável da tensão e do conflito paradoxalmente contido nas dádivas: é o famoso caso do potlatch, entre outros).
Dar voz ao outro é uma expressão que deve ser lida em seu sentido antropológico profundo, frequentemente desconsiderado por quem recorre a ela como se estivesse livre de ambivalência: uma dádiva da voz encerra sempre o laço duplo de um vínculo retorcido, a obrigação de uma submissão ou de uma contra-dádiva ainda maior ou mais significativa, a captura no círculo agonístico de uma disputa originária e de um curto-circuito inescapável.
Em seu conhecido “Ensaio sobre o dom”, Marcel Mauss assinala essa ambiguidade, por exemplo, na genealogia germânica do termo Gift, que pode assumir tanto o sentido de “presente” quanto o de “veneno”. (É um curto-circuito comparável da lógica da identidade que está em jogo no phármakon grego, que é tanto remédio quanto veneno.) Dessa forma, a dádiva (da voz) é indissociável da inoculação de um veneno, que assume a forma de silenciamento dissimulado e opera por meio da usurpação da voz, da construção de uma relação em que o sujeito da dádiva fala em nome do outro, como se fosse o outro, sem explicitar essa máscara, essa mediação, essa estrutura de representação e adiamento da relação de alteridade.
Agarrando pueblo (Luis Ospina e Carlos Mayolo, 1977) inscreve uma interrogação da dádiva da voz como veneno no campo do cinema e do audiovisual, por meio de uma corrosiva sátira do processo de produção de um filme sobre o “povo”. Nesse processo, nesse filme dentro do filme, a equipe persegue e captura imagens-clichês, sempre com o intuito de denunciar a pobreza, a miséria etc. Esse registro satírico é explícito desde o início, na medida em que a busca de imagens parece sempre absurda e aleatória, e uma espécie de denuncismo vazio desrespeita repetidamente as pessoas filmadas, enquanto a equipe e a própria câmera são recorrentemente hostilizadas por algumas delas. Mas a sátira se torna ainda mais explícita com uma interrupção abrupta das filmagens de uma entrevista artificialmente controlada, encenada diante da câmera, calculadamente construída para corresponder ao denuncismo vazio e irresponsável.
A interrupção do artifício enganoso e da desonestidade fundamental da entrevista e, metonimicamente, de todo o filme dentro do filme conduz ao que o protagonista da interrupção, Luís Alfonso Londoño, chama pouco depois de “parte obscena” do filme, enquanto conversa com os diretores de Agarrando pueblo, Carlos Mayolo e Luis Ospina, sobre a sátira (e por isso, nesse momento, a aparição dos cineastas parece ser investida de outro sentido, demonstrando uma intenção de explicitar e refletir sobre a própria sátira, como se essa sátira estivesse restrita ao que ocorre antes disso – mas talvez fosse interessante pensar um transbordamento não intencional da sátira aqui, uma espécie de meta-sátira). Após interromper a entrevista, Londoño simula limpar a bunda com o dinheiro que o produtor do filme dentro do filme usa para tentar comprá-lo (mas é preciso perguntar: a meta-sátira persiste? Será que se trata do produtor do filme de Ospina e Mayolo?).
A “parte obscena” de Agarrando pueblo é uma espécie de parte maldita (no sentido que Georges Bataille dá ao conceito), que interrompe a economia restrita da expropriação de imagens e sua obscenidade e insinua a abertura de uma economia geral. Nessa economia geral, depois de interrogar a enganação do gesto de “dar voz ao outro” quando se fala em nome do outro, silenciando sua sensibilidade e seu discurso, Agarrando pueblo finalmente se dedica a dar voz a Londoño: Ospina e Mayolo perguntam a ele sobre suas impressões em relação ao filme. Tudo se passa como se, aqui, depois de questionar a dádiva da voz, pensando e interrogando sua ambivalência, o filme ensaiasse uma dádiva sob rasura. Se é possível dar voz ao outro, é somente por meio de um trabalho de reflexão e desconstrução dessa dádiva ambivalente.