As histórias são como os oceanos: apesar de parecer que começam (e terminam) em algum lugar, seus limites se transformam incessantemente, em uma dança de vários ritmos entrelaçados (ondas, marés, estações, movimentos tectônicos). Apesar da aspiração ao azul, o que resta tende ao vermelho: The multitudinous seas incarnadine a história à deriva1. A gente acaba precisando decidir: onde começa a contar, onde acabam as contas e os contos, o que dá e o que não dá pra contar?
Haroldo de Campos, ao escrever Galáxias, decidiu começar pelo começo, pela questão do começo – que é também a questão do começo da escrita: “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso”, lemos na primeira linha, no primeiro verso, nas primeiras palavras que compõem a mancha móvel do texto oceânico que constitui o poema. A gente acaba precisando decidir, mas a verdade é que não há medida alguma, nenhum princípio nem fundamento para nos guiar. Nenhum Virgílio na descida ao inferno.
Entre tanto: para toda história, é preciso medir o oceano, e então se busca fundamentar o começo em algum princípio, dar âncora à deriva da história, restituir à origem, enfim, a gravidade de um comando. Instituir e reinstituir a arché de um arquivo: o princípio, começo e comando, início e ordem. A aspiração ao azul: limpar os rastros de todo ruído, expurgar os restos de toda poeira, fazer emergir, em nítido contorno, o limite enfim fixado como cerca (que será preciso cultivar como a cerca viva de uma morada perecível, e não policiar como a fronteira murada de um império).
Entretanto: se multiplica em cada história a incerteza da medida, vacila sem remédio o fundamento da origem, âncora alguma perdura no oceano. É preciso então reconhecer a condição anarquívica de todo arquivo, a insuficiência de todo princípio, seja como começo ou comando: “An-arché: não-princípio, mas também não-negação-do-princípio. Um “entre”: ponte sem margens.” (p. 30) – como lemos no fragmento 198 dos exercícios de anarqueologia de Hilan Bensusan, Leonel Antunes e Luciana Ferreira em torno de Heráclito, que nunca entrou duas vezes no mesmo rio, talvez nem mesmo uma única vez, já que, como lemos no fragmento 128: “As águas nunca são as mesmas” (p. 22).
As histórias nunca são as mesmas, a história nunca é a mesma, o mesmo rio, o mesmo oceano. “Há muitos começos – mas também eles se encontram no mesmo plano. […] Nenhum império dura porque há sempre outros começos.” – lemos também no fragmento 198 do Heráclito em recomeço e arremesso dos exercícios de anarqueologia (p. 30). Nem mesmo os oceanos duram: se olhamos de perto, sua impermanência é onda; um pouco mais de longe, reconhecemos a variação da maré; acumulando dias, semanas e meses, adivinhamos estações; bem de longe, no tempo profundo que faz do pronome nós uma abstração ainda mais inabitual, inferimos movimentos igualmente profundos. Em toda parte, a tendência ao vermelho: ferrugem carcomendo os cascos dos navios, sangue avermelhando as superfícies das águas, cinzas incontáveis incandescendo ainda.
Referência:
BENSUSAN, Hilan; ANTUNES, Leonel; FERREIRA, Luciana. Heráclito: exercícios de anarqueologia. São Paulo: Ideias e Letras, 2012.
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. 2ª ed. revista. São Paulo: Editora 34, 2004.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. O parecer de Synéas. Em: qvasi: segundo caderno. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 111–112.
A frase The multitudinous seas incarnadine a história à deriva combina um verso de Macbeth, de William Shakespeare, retomado em Galáxias, de Haroldo de Campos (2004), com um verso de Edimilson de Almeida Pereira (2017). Talvez seja possível rescrevê-la em tradução-transcriação como: O mar multitudinário encarna a história sem rumo ou O mar multitudinoso avermelha a história em extravio. ↩