Rilke shake, Rilke break, Rilke scratch

Em um dos versos do poema “a mulher dos outros”, Angélica Freitas escreve: “noutros tempos rilke me chamaria pro jardin des plantes”. Cito fora de contexto, evidentemente, mas talvez todo texto poético reivindique de alguma forma a quebra ou o transbordamento do contexto, sua trituração, seu dilaceramento, sua mistura com outros contextos. Em toda poesia, em suma, alguém diz algo que se pode reconhecer no título do livro de Angélica Freitas em que está esse poema: Rilke shake.

Outro dia, sem chegar a me levar para lugar nenhum, Rilke me chamou para o Jardin d’Acclimatation. Eu tinha encontrado o poema “Die Aschanti (Jardin d’Acclimatation)”, que tem um título estruturalmente análogo ao poema “Der Panther (Jardin des plantes)”, provável referência do verso de Angélica Freitas, mas é bem menos conhecido e comentado, até onde sei.

A cada vez, duas palavras nomeiam uma alteridade: aquela do nome próprio que corresponde ao etnônimo “Aschanti”, “Ashanti” ou “Asante”, conforme um fluxo de variações linguísticas em torno do que parece insistir aí como uma espécie de núcleo de intraduzibilidade; e aquela do substantivo comum “Panther”, “pantera”, conforme o fluxo de uma tradução cuja evidência parece incontornável em sua conversibilidade transparente.

A cada vez, depois de nomear a alteridade, o título do poema de Rilke a inscreve, entre parênteses, em uma localidade parisiense, em um parque, em uma conhecida atração turística secular da capital francesa: o Jardin d’Acclimatation, conhecido atualmente sobretudo como um parque de diversões voltado ao público infantil, mas que na época do poema operava como um parque de exposições zoológicas e antropológicas; e o Jardin des Plantes, conhecido atualmente sobretudo como jardim botânico, mas que na época do poema operava como um parque zoológico. Ao menos é o que consegui aprender de longe, reunindo fragmentos de informação em minhas buscas, já que nunca os visitei.

Entre a alteridade étnica e a alteridade animal, os dois poemas talvez possam ser entendidos como uma espécie de díptico elusivo. Segundo minhas pesquisas, foram escritos em um intervalo de cerca de seis meses, primeiro “Der Panther”, em novembro de 1902, depois “Die Aschanti”, em maio ou junho de 1903. Apesar de sua proximidade, enquanto o poema situado no Jardin des Plantes, traduzido para o português por Augusto de Campos em Coisas e anjos de Rilke, é um dos mais conhecidos do poeta austríaco, o poema situado no Jardin d’Acclimatation, como uma espécie de face oculta, parece ter sido relegado ao esquecimento: salvo engano, não foi traduzido para o português, sendo também frequentemente ignorado na bibliografia mais canônica sobre o poeta.

No díptico elusivo assim composto, a correspondência estrutural estabelecida pela justaposição dos títulos associa a designação individual de uma figura animal e a designação coletiva de um grupo étnico, evidenciando uma relação que se condensa no fenômeno dos zoológicos humanos. Essa conversibilidade entre humano e animal é característica do racismo colonial-moderno e se realiza especificamente em relação às múltiplas figuras agrupadas indiferentemente como “negros” na perspectiva euro-ocidental e branca que define esse racismo.

Encontrei o poema “Die Aschanti” quando pesquisava sobre as aparições reunidas sob essa designação em zoológicos humanos de diferentes países da Europa, na virada entre os séculos XIX e XX. Uma dessas aparições permanece visível em 14 das vistas cinematográficas de 1897, reunidas no catálogo Lumière. Em uma leitura contra-colonial, tentei analisar esse tipo de figuração da alteridade como uma evidência de que o chamado “cinema de atrações” que marca os primeiros tempos da história do cinema é inseparável de um regime de extração.

Além da “aldeia Aschanti” que foi filmada pelo cinematógrafo dos irmãos Lumière em 1897, rastros de muitas outras que foram construídas na mesma época podem ser encontrados em jornais, pinturas, obras literárias… Um desses outros rastros é o poema de Rilke, que visitou a “aldeia Aschanti” que foi apresentada em um zoológico humano em 1903 no Jardin d’Acclimatation.

Quando li o poema, por meio de sua tradução para o inglês (publicada junto com a versão original na tradução de Edward A. Snow de O Livro das Imagens), a impressão inicial, que não consegui elaborar mais, se condensou em uma palavra que não aparece ali: quebra. Diferente do poema da pantera, que podia se projetar sugestivamente fora de si mesmo – a ponto de chegar a compor o Rilke shake de Angélica Freitas – o que “Die Aschanti” me ofereceu foi uma espécie de frustração do desejo de poesia, que depois consegui analisar como a interrupção do fluxo de figuras de linguagem e como uma redução do contato com a alteridade à negação de toda escuta. Rilke break.

Seguindo com as pesquisas, lendo o que pude encontrar sobre “Die Aschanti” (com recorrentes aproximações e comparações com “Der Panther”), fui ampliando minha relação com o poema, sobre o qual estava tentando escrever, com base na tradução para o inglês (e em uma tradução para o espanhol que encontrei). Aí percebi o óbvio: como eu queria citar seus versos, eu precisava traduzi-lo para o português. O problema: não conheço o alemão. Apenas arranho o idioma, como se diz. Resolvi me arriscar: Rilke scratch.

Traduzir poesia talvez seja sempre isso: traduzir a partir de um idioma que nunca poderemos conhecer. Busquei me valer de dicionários e tradutores automáticos, tentando confirmar as sonoridades do alemão para entender as rimas de Rilke, ao mesmo tempo em que procurava articular os sentidos de seus versos. As traduções existentes em inglês e em espanhol, que foram as que pude consultar, foram valiosas no que diz respeito à parte da articulação dos sentidos dos versos, mas algo ficou evidente logo de cara: nenhuma delas parecia sequer tentar reter a textura sonora do poema.

Arranhando o alemão, decidi arranhar também o português, para entrelaçar som e sentido, ruído e opacidade. O resultado é provavelmente bastante ruim, cheio de falhas de métrica (questão que não fui capaz de considerar) e problemas que nem consigo descrever. Mas serviu ao meu propósito fundamental de citar o poema no texto que escrevi (devidamente acompanhado da reprodução do original e da tradução para o inglês).

Enquanto não sai esse texto (em que elaboro, entre outras coisas, uma leitura crítica do poema – ou o que prefiro chamar, desde o artigo sobre o catálogo Lumière, de leitura anarquívica), e depois de ter tido a ousadia de enviar minha tradução para o e-mail que encontrei na página de Augusto de Campos no Facebook, compartilho abaixo minha tradução, ao lado do poema em alemão. Quem sabe alguém se interessa, faz as devidas correções, entra no jogo ou sugere outros jogos.

Os Aschanti
(Jardin d’Acclimatation)

Nenhuma visão de terras distantes,
nem sentimento de mulher morena,
a dançar para fora de seus mantos.

Nenhuma selvagem e estrangeira melodia.
Nenhuma canção, que venha do sangue,
e nem sangue, que do fundo grita.

Nenhuma garota morena, aveludante
em fadiga tropical dilatada;
nem olhos, como arma incinerante,

e em riso cada boca se escancara.
E uma mútua compreensão estranha
com a vaidade das pessoas de pele clara.

E com tanto medo eu mais olhando.

Ah, os animais mais fiéis são,
que lá e cá entre grades andam,
em desarmonia com o novo e sua agitação
de coisa estrangeira que não compreendem;
e eles queimam com um fogo sem som
na quietude de si em que se afundam,
dando às novas aventuras só desatenção
e com seu sangue grandioso estão sozinhos.

Die Aschanti
(Jardin d’Acclimatation)

Keine Vision von fremden Ländern,
kein Gefühl von braunen Frauen, die
tanzen aus den fallenden Gewändern.

Keine wilde fremde Melodie.
Keine Lieder, die vom Blute stammten,
und kein Blut, das aus den Tiefen schrie.

Keine braunen Mädchen, die sich samten
breiteten in Tropenmüdigkeit;
keine Augen, die wie Waffen flammten,

und die Munde zum Gelächter breit.
Und ein wunderliches Sich-verstehen
mit der hellen Menschen Eitelkeit.

Und mir war so bange hinzusehen.

O wie sind die Tiere so viel treuer,
die in Gittern auf und niedergehn,
ohne Eintracht mit dem Treiben neuer
fremder Dinge, die sie nicht verstehn;
und sie brennen wie ein stilles Feuer
leise aus und sinken in sich ein,
teilnahmslos dem neuen Abenteuer
und mit ihrem großen Blut allein.

  • Marcelo R. S. Ribeiro

    Entropólogo da disseminação de mundos e professor de cinema‑delírio na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor do livro Do inimaginável (Editora UFG, 2019), coordena o grupo (an)arqueologias do sensível, desenvolve e orienta pesquisas sobre imagem, história e direitos humanos, cinemas africanos, história do cinema, arquivos e descolonização.

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