Um dos novos projetos do grupo de pesquisa e estudos Arqueologia do sensível, chamado Anarqueológicas, tem como objetivo explorar as possibilidades de diferentes plataformas de compartilhamento de textos, vídeos, áudios e produtos multimídia, por meio da internet, para divulgação científica e artística.
Estamos começando as experiências nessa direção, e nesse contexto fiz, de forma um pouco improvisada, um pequeno vídeo, que foi divulgado no canal do grupo no YouTube, sobre um livro precioso. Você pode assistir no link ou logo abaixo. Se preferir, após o vídeo está disponível o texto que serviu de base para o que falei. Não é uma transcrição, mas se sobrepõe a muito do que está ali.
Se você quiser saber mais ou acompanhar as atividades do grupo, assine a newsletter que criamos, também dentro desse novo projeto: Derivas anarqueológicas.
Marie José Mondzain é uma das filósofas mais importantes da atualidade, e suas obras são fundamentais para quem estuda imagens. Nascida em Argel, em 1942 (quando a atual Argélia ainda era uma colônia francesa), ela tem hoje 72 anos, completados no último dia 18 de janeiro, e escreveu obras fundamentais como Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo, A imagem pode matar? e Homo Spectator.
O livro O que você vê? foi publicado originalmente em 2008, como parte de uma linha editorial destinada ao público jovem, da famosa editora francesa Gallimard. Em 2012, a editora Autêntica publicou o livro no Brasil, em tradução de Mariângela Haddad.
Já na introdução, Mondzain diz que o livro “foi escrito na companhia de crianças”, explicando que, durante dois anos, ela visitou escolas de diversas cidades da França, para conversas sobre “tudo o que vemos, tanto na realidade quanto nas imagens”. São essas conversas que, no livro, se transformaram em um “diálogo imaginário” entre Marie José e Emma, mas tudo o que a garota diz “foi realmente falado por algumas [das] crianças” que Mondzain encontrou nas escolas.
O texto, então, escrito por Mondzain “na companhia de crianças”, compõe o livro junto com as ilustrações de Sandrine Martin, que representam a filósofa e a garota, seus encontros e temas, suas imaginações e derivas. Isso faz com que a obra assuma a forma de um diálogo filosófico, e por isso acho que é possível reconhecer que ela participa da mesma linhagem filosófica dos diálogos platônicos, por exemplo. Ao mesmo tempo, é um livro ilustrado ou mesmo uma história em quadrinhos, e as imagens fazem parte, assim, do conteúdo e da forma de expressão do pensamento, não apenas porque as palavras convocam imagens mentais enquanto lemos, como ocorre com qualquer texto, inclusive os diálogos platônicos, com todas as suas cavernas, mas porque as ilustrações de Sandrine Martin complementam e deslocam o conteúdo textual.
Alguns assuntos das lindas conversas entre Marie José e Emma são a experiência da visão; o ato de ver o mundo e as imagens; a mediação do contato com si mesmo e com o mundo por espelhos, fotografias, desenhos, filmes e outros instrumentos da visão; o papel do jornalismo e a importância particular das imagens de televisão como forma de visualizar o mundo; a potência libertadora da imaginação; a experiência aterradora das imagens que causam medo ou representam a morte. De modo geral, o ponto de partida é a importância do próprio ato de conversar, e se destaca o modo como falar é o que torna possível compreender melhor as imagens e o mundo, de forma mais aberta.
Muita coisa me chamou a atenção, mas gostaria de destacar dois momentos das conversas, sem querer dizer que sejam os mais importantes nem nada parecido. São só uma parte das preciosidades desse livro. A primeira está no início. Quando conversam sobre o que é fazer filosofia, Marie José e Emma imaginam como seria uma vida em que ninguém precisasse conversar sobre o que é incerto e sobre o que não pode ser constatado imediatamente. Nessa vida, as pessoas só falariam se está chovendo ou se faz sol, só conversariam sobre o que é evidente, e por isso Emma diz que “nem teria mais vontade de falar”, e Marie José completa: “Bastaria aprender a escrever bem e a calcular bem, sem nunca se questionar sobre o que não é certo.” Quando Emma responde que “Seria como a vida dos robôs”, se inicia o primeiro momento que queria destacar, com uma reflexão sobre essas “máquinas que nunca cometem erros”, nas palavras de Emma, e que por isso têm uma vida que é um pouco como a morte. É contra essa obediência cega dos robôs à certeza e à exatidão que vai aparecer uma definição incrível de filosofia.
Marie José diz: “Poderíamos imaginar robôs que fazem perguntas a si mesmos e não sabem mais responder.” Emma continua: “Então, um filósofo é como um robô com defeito?” Marie José concorda: “Essa ideia me agrada bastante.” A ideia de “robôs com defeito” é um lembrete do cultivo dos defeitos, das falhas, das faltas, que caracteriza toda filosofia, todo pensamento especulativo, mas também, eu acrescentaria, e acho que Marie José e Emma concordariam comigo, toda arte e toda criação. Esse interesse na suspensão ou destruição do que determina como as coisas devem ser é, para mim, um interesse em reconhecer e experimentar a alegria na falta de sentido. Isso tudo aponta para a relação da filosofia, e também da arte, e sobretudo do que a gente poderia chamar de arte de viver, com a perturbação de todo programa e de toda programação.
O segundo momento que eu gostaria de destacar é o de uma conversa sobre televisão. Não é a primeira vez que falam disso. Emma menciona o medo que sentiu ao ver imagens da catástrofe causada por um tsunami, e sua dificuldade de falar sobre isso. Depois de Marie José sugerir que ela use o caderno de anotações das conversas, que a garota chamou de “caderno do pensamento do mundo”, para tentar falar sobre o medo que sentiu, escrevendo e desenhando, Emma acaba escrevendo que se sente “afogada”. Marie José pergunta: “Mas afogada em quê?”. Emma diz: “Nas imagens da morte.”
A conversa continua, e depois de falarem de tudo o que seria necessário para salvar as pessoas afogadas pelo tsunami, Marie José pergunta se também seria preciso tudo isso pra salvar Emma de se sentir afogada pelas imagens. “Claro que não!”, responde a garota, e então a filósofa propõe “construir um barco imaginário em que nós duas vamos embarcar”. Contra as imagens que afogam, contra as imagens que matam, que são, como diz Emma em outro momento do livro, as imagens que colocam a morte na nossa cabeça sem que a gente possa fazer qualquer coisa sobre isso, nesse “barco imaginário” elas criam e juntam imagens e palavras que salvam. “Estamos num barco imaginário, e são as imagens que nos submergem. Vamos fabricar um colete salva-vidas imaginário!”, diz Marie José. “E vamos colocar neste barco as palavras que salvam!”, completa Emma. Então, filosofar é o que fazem robôs com defeito, e isso significa ir contra as imagens que afogam, e também as palavras que afogam, pois, como diz Marie José, “as imagens e as palavras, juntas, deveriam nos ajudar a não nos afogar.” (p. 142).
O livro é dividido por meio das seguintes perguntas, que operam como capítulos em relação ao texto e delimitam diferentes encontros entre Marie José e Emma:
- Você vê a mesma coisa que eu vejo?
- Como ver uma imagem de si mesmo?
- Como ver o que nossos olhos não veem?
- Como ver o que não existe?
- Como ver o que sentimos?
- Como ver a realidade?
- O que você vê na televisão?
- O que você quer ver do mundo?