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Diário Ensino

Do cinema mundial às cosmopoéticas

Neste segundo semestre de 2023, ofereço novamente uma disciplina de pós-graduação no Póscom-UFBA, uma optativa ligada à linha de pesquisa Culturas da Imagem e do Som, aberta a estudantes de outros programas e instituições, assim como a ouvintes (afinal, a universidade é pública). O código e nome da disciplina no sistema são POSCOM0031 – Teorias da Análise de Produtos e Linguagens da Cultura Mediática, e o tema que estudaremos juntos é Estudos Comparados de Cinema Mundial.

O que proponho é, dizendo de modo muito breve e condensado, um caminho em direção à história do cinema como anarqueologia do sensível (por analogia, em diálogo e em deslocamento reflexivo do que Thomas Elsaesser formulou ao falar de história do cinema como arqueologia das mídias). É um curso que elabora a mudança de nome do grupo de pesquisa que coordeno, que se chamava Arqueologia do Sensível e se tornou o grupo (an)arqueologias do sensível (GAS ou GAAS). É a ocasião de uma retomada de uma conversa sobre os alguns dos conceitos de mundo que informam, atravessam e assombram os estudos de cinema, em seus diálogos com a literatura comparada e outros campos.

Se fosse pra identificar de forma bem direta o que quero explorar no decorrer do semestre, seria possível recuperar alguns textos que escrevi e pretendo discutir no decorrer do semestre, na medida em que apresentam gestos que, retrospectivamente, me parecem bastante significativos diante da história do cinema. Apresento-os abaixo fora da ordem em que devem aparecer no curso, em vez disso seguindo a arbitrária cronologia familiar que recorta a história do cinema, partindo do primeiro cinema, passando pelo cinema clássico e pelo documentário, para chegar à descolonização e à emergência dos cinemas africanos.

Em “Cosmopoéticas da desobediência informe: leitura contra-colonial do regime da extração no catálogo Lumière”, o gesto é o de uma (re)leitura anarquívica. Nesse texto, proponho rever o famoso catálogo inaugural da circulação mundial do cinema não tanto a partir do trem que chega à estação, nem tão somente a partir dos trens e navios que partem para outras paragens, mas a partir do curto-circuito de um conjunto de vistas filmadas em 1897 em uma exposição colonial em Lyon, na qual a exposição de uma “aldeia ashanti” se torna objeto do olhar cinematográfico.

Em “Tarzan, um negro: para uma economia política do nome de ‘África’”, o gesto é o de uma leitura que cheguei a denominar desconstruiva, e me parece que será preciso reivindicar alguma memória da desconstrução para seguir o movimento de qualquer arqueologia. Nesse texto, procurei pensar o racismo colonialista de Tarzan a partir da ambivalente incorporação rarefeita de seu imaginário em Eu, um negro, o filme crucial que conhecemos sob a assinatura autoral de Jean Rouch. Assim, é o cinema narrativo clássico e sua lógica de integração narrativa que se colocam em crise, a partir de dentro, de séries disjuntivas que perturbam a narrativa, em contato com figuras de alteridade.

Em “Autorias rasuradas em Afrique 50: para uma economia política das assinaturas”, o gesto é o de uma leitura centrífuga do filme como processo (em contraposição ao sentido centrípeto de todo pensamento que toma os filmes como produtos). Nesse texto, o que me interessa é entrever o que resta, no documentário Afrique 50 tal como foi assinado por René Vautier, de um conjunto heterogêneo de figuras que foram cruciais para a existência material do filme, cujas assinaturas são legíveis sob rasura. Essas autorias rasuradas dizem algo sobre uma nebulosa, associada à solidariedade anticolonial, que antecede a configuração das múltiplas constelações dos cinemas africanos como cinemas pós-coloniais.

Em “Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do olhar, retorno às origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos”, o gesto é o de experimentar as derivas de sentido que se estabelecem nas constelações dos cinemas africanos. Sem explicitar a ideia de constelação, o texto aborda duas figuras móveis e relacionadas entre si: a das cosmopoéticas da descolonização e a das cosmopoéticas do comum. É, assim, o próprio conceito de mundo que se encontra em questão, em aberto, em processo, não como uma referência fixa, mas como uma evidência instável que somente será possível pensar anarqueologicamente.