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Diário Pesquisa

A pesquisa como elaboração de sintomas

No dia 31/07, começaram as inscrições para o processo seletivo para 2024 do Póscom-UFBA, que ficam abertas até 03/09. São 35 vagas para mestrado e 20 vagas para doutorado, em três linhas de pesquisa: Comunicação e Cultura Digital, Culturas da Imagem e do Som e Mediatização e Indústria da Mídia.

O Póscom é o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, que já existe há mais de 30 anos na UFBA e alcançou a nota 6 na última avaliação quadrienal da Capes, mas não é (só) por isso que eu acho que vale a pena vir estudar com a gente.

Lógico: a nota tem sua importância, sobretudo porque significa certa disponibilidade de recursos, bolsas etc. Mas o que vale a pena no Póscom tem mais a ver com a dinâmica baseada em grupos de pesquisa bastante ativos, com reuniões frequentes e muito diálogo, suplementando a relação de orientação.

Falo com meus colegas de diversas coisas que me parece necessário melhorar na UFBA e no Póscom, mas essa parte relativa ao papel estrutural dos grupos de pesquisa é o que mais me interessa resguardar e aprofundar por lá. Se você tiver interesse em fazer mestrado ou doutorado com minha orientação, por exemplo, é no grupo que coordeno que vamos compartilhar uma experiência coletiva de produção de conhecimento.

É o grupo que ajudei a criar em 2018, naquele momento com o nome Arqueologia do Sensível, atualmente metamorfoseado em grupo (an)arqueologias do sensível. No domínio e em boa parte do site, que dá conta de parte da nossa história (mas precisa ser atualizado), está ainda o termo “arqueologia”, no singular. Pela facilidade, tenho mantido nosso cronograma mais atualizado na página pública do nosso Notion.

No site dá pra ter uma ideia da proposta do grupo, assim como de parte significativa das pesquisas que já abrigou. Já falei um pouco da deriva entre arqueologia e anarqueologia, que corresponde efetivamente a um projeto de desativação da arqueologia como anarqueologia.

Também está em grande parte do que escrevo a disseminação do conceito de sensível, que ainda gosto de entender por meio de uma aproximação um tanto heteróclita entre Emanuele Coccia e Jacques Rancière, suplementada por algo de Georges Didi-Huberman e Walter Benjamin, entre outras figuras (é para onde aponta a proposta do grupo). Nesse sentido, para estudar o sensível, nos interessam gestos menos lineares, menos classificatórios ou tipológicos, mais inquietos e mais abertos à multiplicidade, ao reconhecimento e à exploração do caráter móvel e instável de toda contextualização – como os gestos que informam o Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, por exemplo.

Mais recentemente, na medida em que a deriva da arqueologia para as anarqueologias se consolida de modo articulado com a radicalização de um projeto de descolonização (que está em jogo desde antes no grupo e na minha trajetória), começamos a incorporar mais diretamente algumas referências menos europeias (ainda que não seja só isso que está em jogo aí) para elaborar nossas questões.

Assim, já experimentamos, por exemplo, deslocar a “história a contrapelo” de Benjamin em contato com o “tempo espiralar” dos cosmogramas bakongo de que fala Leda Maria Martins. Ensaiamos também uma aproximação com a sociologia da imagem de Silvia Rivera Cusicanqui, que ainda precisamos voltar a ler. Exploramos a “ciência encantada das macumbas” de que falam Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. São vários caminhos já trilhados, ou insinuados, em suas múltiplas aberturas para o mundo e para outras formas de saber.

Do ponto de vista da minha trajetória, o percurso do grupo está relacionado a diferentes interesses de pesquisa que, entre idas e vindas, vem demarcando caminhos mais ou menos visíveis, no decorrer dos anos. São temas diversos, que naquele texto introdutório do Lattes, resumi por meio do seguinte encadeamento de palavras-chave: imagem, história e direitos humanos (tema de meu curso de pós de 2021), cinemas africanos, história do cinema, arquivo e descolonização.

Ao mesmo tempo, gostaria de destacar dois temas articulados, que operam como assinaturas, talvez, do que tem me assombrado nas diferentes pesquisas a que tenho tentado me dedicar: o anarquívico e as cosmopoéticas.

A noção de anarquívico remonta a um texto bastante inicial de 2010, assumidamente fragmentário, sobre pulsão anarquívica e foi mais elaborada na minha discussão sobre remontagens anarquívicas das imagens dos campos nazistas (e sua condição geral de abertura anarquívica), em Do inimaginável.

Mais adiante, no projeto “Imagem e direitos humanos”, recorri à noção de anarquívico para pensar, entre outras coisas, alguns modos de reconstituir a história e de recompor mundos comuns em meio à violência dos genocídios indígenas no Brasil, no artigo “Cosmopoéticas do espectador selvagem”.

No projeto mais recente, ainda em andamento, tenho elaborado uma tentativa de reconhecer e reivindicar o que denomino paradigma anarquívico, entendido como campo metodológico. Isso aparece em uma leitura anarquívica do catálogo Lumière, em um estudo de Afrique 50 em busca de autorias rasuradas e, principalmente, em algumas proposições ainda não publicadas que já apresentei em eventos ou em reuniões do grupo.

A noção de cosmopoéticas, que tem encontrado uma reverberação significativa muito além das minhas formulações, está para mim profundamente relacionada à contingência do anarquívico e, talvez por isso, atravessa o itinerário exemplificativo que esbocei acima. Inventar e criar mundos comuns implica, afinal, confrontar e perturbar a ordem destruidora de mundos que define o projeto da modernidade.

É, em alguma medida, o nexo entre a questão do anarquívico e a das cosmopoéticas que está em jogo no curso sobre Estudos comparados de cinema mundial que ofereço neste segundo semestre de 2023 (e as leituras desse curso serão as mesmas das reuniões quinzenais do grupo). A proposta de passar do debate sobre cinema mundial à questão das cosmopoéticas depende de um itinerário em que tenho recorrentemente tentado inscrever esse conceito, evitando, sempre que possível, reduzi-lo a uma definição fechada.

Toda essa já longa revisão pode ser lida como uma anamnese: um relato que permite ou poderá permitir, a depender da leitura, reconstituir um histórico de sintomas. Pesquisar é, talvez, muito frequentemente, elaborar os sintomas que nos assombram, e é por isso que me interessa a centralidade estrutural dos grupos de pesquisa na dinâmica do Póscom, em geral, e o espaço-tempo singular do grupo (an)arqueologias do sensível, em particular. É aí que a elaboração dos sintomas encontra condições dialógicas, coletivas, partilhadas, para sua deriva inquieta.