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Diário Entre-imagens

Da arqueologia à anarqueologia

Há muita coisa mais relevante, e isso aqui talvez seja um descaramento: reli neste final de semana o livro que resultou do meu doutorado, Do inimaginável, e vi que está disponível com mais de 50% de desconto no site da editora UFG: https://loja.editora.ufg.br/artes/do-inimaginavel-75/p (de R$ 57 por R$ 28).

Da última vez que verifiquei, a Editora UFG oferecia opção de frete por registro módico, o que dava uns 10 reais, então o livro sairia nesse caso por cerca de R$ 38, o que me parece um preço razoável para livros hoje em dia, considerando também que tem lá algumas imagens e tal.

Em todo caso, dá pra saber mais sobre o livro aqui: https://incinerrante.com/livros/do-inimaginavel/
Além de ser a revisão parcial de um recorte da minha tese, é o fundamento um tanto incerto de derivas posteriores de pesquisa sobre imagem e direitos humanos, arquivo etc. E foi por isso que decidi reler.

Estou tentando revisitar alguns momentos do meu itinerário de pesquisa, não porque eu ache que são qualquer coisa de incrível (mas acredito, sim, na sua relevância), mas porque começou a ficar evidente que há uma inquietação que os atravessa.

É uma inquietação relativa ao sensível, às imagens como algo irredutível aos significados que eventualmente produzem, uma inquietação que eu não soube nomear ou pensar muito bem em outros momentos, e que agora consigo entender que não tem nome próprio, por assim dizer.

Apesar de ter sido pensando em algo que diz respeito a essa inquietação que criamos o Arqueologia do Sensível, este é no máximo um nome impróprio, que logo se tornou necessário desativar, reescrevendo-o como (an)arqueologia do sensível.

A introdução de Do inimaginável está disponível gratuitamente, e começa com um movimento argumentativo que evidencia o sentido arqueológico e a deriva anarqueológica da relação com o sensível que define a inquietação a que me refiro.

Ao falar dos direitos humanos, ali, retomo uma expressão do preâmbulo da Declaração Universal de 1948: “consciência da humanidade”. O sentido arqueológico dessa retomada interpretativa é o de situar essa ideia em relação à circulação inicial das imagens dos campos nazistas.

Se, no preâmbulo da DUDH de 1948, a “consciência da humanidade” aparece em contraposição a “atos bárbaros” que a “ultrajaram”, a circulação das imagens dos campos destina um conjunto de evidências sensíveis do inimaginável desses “atos bárbaros” a uma consciência espectatorial.

Mas esse sentido arqueológico não é suficiente para compreender nem os direitos humanos nem as imagens, na medida em que sempre se projetam sobre outros contextos e recusam qualquer arkhé. Uma deriva anarqueológica se insinua aí (aprofundando-se nos demais capítulos do livro).

Se os direitos humanos se tornam um campo de reivindicação efetiva de dignidade, é porque transbordam o contexto da resposta aos campos nazistas no pós-guerra e permanecem irredutíveis à arkhé do direito positivo que os declara, abrindo-se para um movimento de expansão.

Se as imagens podem ressoar no trabalho de memória em torno da guerra, dos campos, do extermínio, da Shoah etc., é porque transbordam o contexto específico de que emergem e se desdobram em diálogo com outros trabalhos de memória.

Reconduzir os direitos humanos e as imagens a um contexto supostamente original, a uma arkhé que delimita seus sentidos, seria ignorar os fluxos da experiência em que se inscrevem, definindo arbitrariamente uma delimitação, ali onde seria preciso acompanhar em termos de des-limitação.

São movimentos de passagem além dos limites textuais e contextuais que o sensível inscreve nos objetos e nas relações que estabelecemos com eles: no texto da lei internacional dos direitos humanos, por exemplo, e nos modos como podemos nos apropriar de seus termos; na textura das imagens que evidenciam violações de direitos, igualmente, e nos modos como podem circular.

Assim, o que estou tentando pensar agora como uma desativação da arqueologia como anarqueologia é uma exigência empírica, à qual é preciso responder no interior do que se costuma denominar método e que será preciso reconhecer como deriva: não o caminho reto de um método previamente constituído, mas a abertura de uma multiplicidade de caminhos possíveis, entre os quais nenhuma via se demarca como definitiva ou fundamental, restando apenas a experiência do extravio como contingência de onde algum conhecimento pode emergir.