Categorias
Críticas

Film Socialisme: liberdade, igualdade e fraternidade

Tradução comentada do texto de Arthur Mas e Martial Pisani sobre Film Socialisme (2010), de Jean-Luc Godard, publicado na Independencia.


Film Socialisme 11.jpg

Um texto de Arthur Mas e Martial Pisani, publicado na revista Independencia
e traduzido por Marcelo Ribeiro, com notas intercaladas.

“No comment”: o último letreiro de Film Socialisme, evocação astuciosa de uma célebre emissão da Euronews, parece ao mesmo tempo prevenir antecipadamente a ausência notável do cineasta em Cannes

[Nota do tradutor (NT): Godard escreveu uma carta para Thierry Frémaux, delegado geral do Festival de Cannes, explicando sua ausência: “Devido a problemas de tipo grego, eu não poderei ser seu convidado em Cannes. Com o festival, eu irei até a morte, mas não darei um passo a mais. Amigavelmente, Jean-Luc Godard.” / Suite  à des problèmes de type grec, je ne pourrai être votre obligé à Cannes. Avec le festival, j’irai jusqu’à la mort, mais je ne ferai pas un pas de plus. Amicalement. Jean-Luc Godard.]

e a fragilidade dos discursos lançados sobre o filme

[NT: Esbocei os primeiros contornos de um frágil discurso sobre Film Socialisme abordando os fantasmas da alegoria que assombram qualquer leitura do filme, além de ter sugerido uma interpretação das legendas fragmentadas que o cineasta elaborou no que chamou de “inglês navajo”.]

Impossível com efeito propor imediatamente a interpretação de um objeto que não saberíamos nem mesmo descrever. Longe de nós, pois, a ideia de concluir sobre Film Socialisme. Tratar-se-á antes de começar aqui a reunir algumas dessas “coisas assim” que vêm uma após a outra durante a projeção nos contar histórias, e de perseguir a narrativa dessas histórias

[NT: Ao contrário de boa parte das leituras do filme – que enfatizam seu caráter fragmentário, não-unificado e, por isso, perturbador para o espectador, que supostamente não consegue formar uma imagem geral da história, construindo o que David Bordweel, a partir dos formalistas russos, chama de “fábula” – o texto de Arthur Mas e Martial Pisani procura acompanhar os inúmeros fios que se entrelaçam, mesmo que de forma disjunta, no filme de Godard, apontando para a existência de uma narrativa que, embora distante de qualquer classicismo, encontra sua unidade fantasmática e envolve até mesmo a morte de uma das personagens. A sintaxe de Film Socialisme é fragmentária, mas isso não significa que não exista narrativa, mesmo que seja sob a forma de fantasmas.]

Nos cinco trailers se inscrevia em sobreimpressão uma série de assuntos possíveis para Film Socialisme; cabe a nós, agora, abrir essas gavetas, e fazer-lhes o inventário.

1. Coisas

Entre a multidão de objetos de todos os gêneros que circulam em Film Socialisme, há dois, ao menos, que garantem a ligação entre as diferentes partes da narrativa: o relógio que não indica a hora e o aparelho de fotografia. Duas máquinas paradoxais que atravessam o Mediterrâneo passando de mão em mão.

“Wie wiel Uhr ist es? Rien que l’heure juste.” [“Que horas são? Apenas a hora justa.”] O último diálogo do filme reenvia ao relógio de ouro evocado desde os primeiros minutos, e descrito na parte central. Sua proprietária, a camerawoman da France 3, explica seu funcionamento ao jovem Lucien, surpreso com a ausência de ponteiros no mostrador:

– Isso vem do Egito. Foi encontrado no túmulo de um faraó em Tell el-Amarna.

– Mas não há horas, não há nada.

– Sim, mas há o tempo, a noite do tempo. E o dia que decide.

Essa joia, da marca Night and Day, já estava no pulso de Constance na primeira parte, e suscitava igualmente a surpresa de seu afilhado, Ludo: “por que você dizia que esse relógio vale ouro? Ele nem marca as horas”. Uma única solução para que esse objeto único esteja no pulso de duas mulheres negras: que a primeira, que embarca em Argel, o tenha perdido no decorrer de uma visita turística durante a parada no Egito. O relógio faria assim a ligação entre as três partes do filme: “Coisas assim”, “Quo vadis Europa” e “Nossas Humanidades”.

[NT: Toda unidade narrativa que um espectador projeta na construção da fábula (para voltar ao termo de Bordwell) depende de alguma aposta feita com fantasmas: os do filme, os dos textos que o circundam e o atravessam, os do espectador, os dos discursos que o interpelam e o constituem. Ao afirmarem que só há uma solução para a presença do relógio no pulso das duas mulheres, Constance e a camerawoman, Mas e Pisani talvez estejam apostando errado, ou alto demais: é possível encontrar outras soluções para isso, conjurar outros fantasmas para entretecer a narrativa. Por exemplo: é possível imaginar que as mulheres se conheçam e que uma o tenha dado de presente à outra; ou que o relógio tenha sido roubado e, por caminhos diversos, vendido e revendido até chegar à camerawoman;  ou que tenha ocorrido uma troca, de dádivas ou de mercadorias (e aí encontramos uma questão central do filme), entre as duas mulheres… Em todo caso, não resta dúvida de que se trata de um objeto único e de que esse objeto atravessa e une, como uma ponte, os três mo(vi)mentos do filme.]

Outro objeto comum entre os três componentes: o aparelho fotográfico. Sobre o barco da companhia Costa, os turistas não param de tirar fotos da paisagem ou de seus próximos. Godard aliás se serviu de um desses aparelhos digitais para filmar alguns planos. Na segunda parte, ao contrário, nenhum traço desses dispositivos [gadgets] polivalentes, substituídos por uma única câmera digital. Duas maneiras “ruins” de fabricar as imagens para JLG, que opõe a elas no terceiro segmento o trabalho dos grandes cineastas da atualidade: Robert Capa, de quem vemos um retrato célebre, mas também Roman Karmen, que o conheceu em Barcelona em 1936. E não é um acaso se é o fotógrafo, Capa, que tem uma câmera filmadora nessa última parte. Godard ignora deliberadamente a diferença entre cinema e fotografia, ele que não cessa de repetir, desde Longe do Vietnã [Loin du Vietnam], que basta duas fotos para fazer montagem, quer dizer, cinema. É simples como bom dia, e é uma criança, Alissa, que veremos por último com um aparelho fotográfico na mão.

2. Egito, Palestina, Grécia

Entre as imagens que compõem suas “Humanidades”, Godard mistura extratos de documentários sobre animais [documentaires animaliers], ou de misteriosos filmes lançados diretamente em vídeo [direct-to-dvd], a extratos de cineastas admirados e amados. Um desses, Jean-Daniel Pollet, ocupa um lugar central em Film Socialisme, onde se pode contar ao todo oito planos de Mediterrâneo [Méditerranée] entre o primeiro e o último segmento do filme. Se ele também filmou a Espanha, é no Egito e na Grécia sobretudo que esse companheiro de viagem guia o cruzeiro. E é o primeiro plano do filme de Pollet, o mar visto através dos fios de arame farpado, que Godard escolhe, na primeira seção, para representar a impossibilidade de filmar a Palestina: ACCESS DENIED.

3. Do ouro

O primeiro plano de Film Socialisme representa um casal de papagaios sobre o ramo de uma árvore. “Papagaio”, loro em espanhol. O ouro será muito questionado no último filme de Godard: com o relógio já evocado, o colar de peças que uma garota carrega em torno do pescoço, mas também um sombrio viajante que responde pelo nome de Otto Goldberg (“a montanha de ouro”), o ouro negro de um posto de gasolina da região de Vaud, e o transporte, durante o outono de 1936, das reservas do Banco da Espanha até a União Soviética. Esse tesouro, mais conhecido sob o nome de “ouro de Moscou”, é encaminhado para Cartagena a partir de 14 de setembro de 1936, em seguida carregado em quatro navios soviéticos, que partem para Odessa em 25 de outubro. Godard rescreve essa história imaginando que esse ouro é embarcado em Barcelona em 1940, sobre um barco da companhia France Navigation, fundada em 1937. Em sua chegada a Odessa, o navio teria perdido um terço de sua carga, roubada pelos alemães, e ainda um terço durante o trajeto até Moscou, desviado dessa vez por Willi Müzenberg, o responsável pela propaganda do Comintern no Ocidente. Godard constrói assim uma lenda a partir de vários dados históricos contraditórios, mas não se esquece de incluir em “Nossas Humanidades” o verdadeiro porto de partida desse ouro, ao preço de um outro paradoxo, esse geográfico, o anfiteatro romano de Cartagena se encontrando incluído numa série de imagens da Grécia.

A essa primeira travessia do Mediterrâneo responde, em sentido inverso, o cruzeiro de Film Socialisme de Argel a Barcelona, mas passando por Odessa, como nota um passageiro surpreso. Pois o filme de Godard é precisamente uma investigação sobre o desvio misterioso do Ouro de Moscou. Uma jovem mulher russa, a Major Kamenskaïa, está procurando o segundo terço do tesouro, desaparecido entre Odessa e a capital, e encontra Otto Goldberg, um velho homem que teria participado com uma outra identidade do roubo do primeiro terço. Por outro lado, os diálogos fazem alusão ao ouro do banco da Palestina, que teria desaparecido também em circunstâncias misteriosas, e do qual se pode imaginar que justifica a presença, no barco, de um casal de palestinos e de um agente do Mossad.

Godard retoma na realidade o fio de uma História encetada por Fernand Braudel em um artigo de 1946 citado no começo da terceira parte do filme, “Moedas e civilizações: do ouro do Sudão à prata da América” [“Monnaies et civilisations : de l’or du Soudan à l’argent d’Amérique”]. O célebre historiador demonstra como a posse do ouro garantiu a riqueza sucessiva das potências que o roubaram a cada vez. Nessa perspectiva, o périplo do ouro do banco da Espanha é apenas o fim de uma história que começa no século XVI, e que o cineasta transforma em relato fundador do XX. “Assim se ritmam os capítulos da história do mundo. À cadência dos fabulosos metais.”: as últimas palavras do ensaio de Braudel poderiam também servir de conclusão para Film Socialisme.

4. Canalhas

“Hoje o que mudou é que os canalhas são sinceros.”: a frase é pronunciada duas vezes, na primeira e na segunda parte. Mas de quais canalhas se trata? De Richard Christmann em primeiro lugar, personagem histórico em torno do qual gravitam os protagonistas da primeira parte. Esse antigo agente do Abhwer, rede de informação nazista, teria sido durante a segunda guerra mundial um espião duplo, ou mesmo triplo. Em 1940, no roteiro inventado por Godard, Christmann teria participado do desvio do ouro espanhol entre Barcelona e Odessa. Ele foi além disso um dos responsáveis pela prisão dos membros da rede do Museu do Homem, inclusive Alice Simmonet, que ele teria torturado. Nós o reencontramos depois a serviço da FLN argelina, em seguida “representante da Bayer e da Rhône-Poulenc”. Conhecido sob os diferentes pseudônimos de Léopold Krivitsky, Markus e Moisés Schmucke, ele se apresenta durante o cruzeiro sob o nome de Otto Goldberg. Dois outros passageiros estão a sua procura: a Major Kamenskaïa, encarregada de reencontrar o rastro do ouro desaparecido por conta do governo russo, e o tenente Delmas, a quem JLG atribui um antigo amor por Alice Simmonet na entrevista para Mediapart.

[NT: A entrevista com Godard para Mediapart está disponível aqui.]

Eles cruzarão a rota de vários grupos de personagens atravessando o Mediterrâneo por razões diversas: um espião do Mossad e seu dente de ouro, um casal de palestinos, três intelectuais, respectivamente escritor, filósofo e economista, uma jovem mulher, Constance, seu companheiro, e seu afilhado Ludo, que faz amizade com Alissa, a neta de Richard Christmann. Trata-se portanto menos de um cruzeiro turístico do que de uma cúpula internacional dos canalhas. Quando o velho homem e a garota atravessam o hall, eles são observados por uma câmera de vigilância: os viajantes se espionam. Mais longe, o tenente Delmas repete um gesto que realizavam antes dele o herói de O Escritor Fantasma [The Ghost Writer], e aquele de Zona Verde [Green Zone]: ele busca – e encontra – informações na internet. Fichas de informações, crimes inconfessáveis, segredos de Estado, tudo está doravante disponível no Google.

[NT: Escrevi sobre o filme de Roman Polanski aqui, buscando interpretar a figura do protagonista a partir de uma comparação com Sísifo.]

5. Odessa

A parada em Odessa está, evidentemente, ligada à lembrança do Encouraçado Potemkin, e da célebre cena do massacre nos degraus da escada Richelieu. Mas essa lembrança retorna em Film Socialisme de uma maneira inédita em Godard. Às imagens de Eisenstein, o cineasta opõe com efeito aquela de um grupo turístico visitando hoje os lugares da revolta de 1905. Sobreposição surpreendente de dois clichês do mesmo monumento, na qual o mito revolucionário se submete à agência de viagem, e da qual Zbigniew Rybczynski já tinha retirado um filme surpreendente, Steps [Passos], em 1987:

6. Histórias

“Democracia e tragédia se casaram em Atenas sob Péricles e sob Sófocles. Um único filho, a guerra civil”. Na História do século XX que Film Socialisme constrói, essa herança da Grécia antiga se torna o fato central em torno do qual se ordenam ideologias e acontecimentos. A Espanha, e em particular Barcelona, que foi em maio de 1937 o teatro de um combate fratricida entre republicanos, mas também a Grécia do pós-guerra, Odessa em 1905, e mesmo a Palestina são, ao mesmo tempo que pedaços da História do socialismo, os lugares de um eterno combate fraternal. Podemos, evidentemente, nos divertir com o tom apocalíptico de Godard, mas não o lamentar. Pois Film Socialisme é em primeiro lugar um canto de dor [chant de dolor], um canto patético, como a sonata de Beethoven de mesmo nome de que se ouve o segundo movimento na cena do banheiro.

[NT: Trata-se da Sonata Pathétique, ou Sonata para Piano No. 8, em Dó Menor, Op. 13, se a Wikipedia não estiver enganada.]

Essa história europeia é também a da Resistência: aquela dos egípcios a Napoleão em Adeus Bonaparte [Adieu Bonaparte], aquela dos napolitanos às guarnições alemãs e a seus aliados italianos, e certamente aquela da Resistência francesa, com a evocação da rede do Museu do Homem, e em seguida da “Família Martin”. Mas essa última referência, citada e explicada nos letreiros que completam a parte central, esconde sem dúvida várias outras. Pois Godard funde na realidade duas redes de resistência sem ligação entre si. A primeira, “Família Martin”, era uma organização da região de Colmar, encarregada de encaminhar, pelos Vosges e depois pela fronteira suíça, os prisioneiros de guerras e os desertores alsacianos. Missão de que se lembra sem dúvida o cineasta uma vez que é em uma garagem suíça, ao lado de Rolle, que ele roda o cotidiano dessa família francesa em plena campanha eleitoral. A segunda, “Liberar e Federar”, foi efetivamente criada em Toulouse em 1942 em torno da figura de Silvio Trentin, antigo deputado italiano refugiado na França em 1926, intelectual socialista e federalista, partidário dos “Estados Unidos da Europa”. A aproximação curiosa que opera o cineasta entre as duas organizações tem pelo menos duas explicações. Em primeiro lugar, a existência de um grupo “Martin”, dirigido por Josep Rovira, um republicano catalão do POUM, encarregado pela passagem dos Pireneus, e pertencente à rede de fuga Vic, que opera em Toulouse. Em seguida, a lembrança de um slogan do começo dos anos 1950 que Godard tinha retomado no filme-homenagem a Rohmer: “Liberar Henri Martin”. Membro da resistência comunista, o soldado da marinha tinha sido preso por cumplicidade de sabotagem e propaganda contra a guerra da Indochina. Vê-se como, a partir de uma colagem que reúne dois movimentos de resistência, o filme tece um hífen [le film tresse un trait d’union] entre os grandes combates políticos que agitam a Europa depois da chegada ao poder de Mussolini até a descolonização e a construção europeia, passando pela guerra da Espanha e a Resistência. Hífen que tem também, como nome, o socialismo.

No terceiro segmento do filme, “Nossas humanidades”, Godard propõe uma outra figura de “resistência”, dessa vez humanista: seu tio-avô Theodore Monod. Sobre as imagens de sua expedição mauritana, o cineasta faz soar uma frase de Jean Genet, que chama por uma outra liberação, a da língua: “Resguardar todas as imagens da linguagem e se servir delas, pois elas estão no deserto onde é preciso ir buscá-las”.

7. Palavras

Sempre pronto a colocar lenha na fogueira [donner de l’eau au moulin] de seus detratores, Godard multiplica ainda com Film Socialisme as citações, de La Rochefoucauld até Henri Guaino, as línguas, e os recursos sonoros, por meio de um uso surpreendente do estéreo. “Diálogo, porra!”: a expressão de Stendhal, colocada na contracapa da edição dos diálogos do filme pela P.O.L., anuncia o tom. Trata-se, ainda uma vez, de ocultar a sofisticação sob a desenvoltura. Quando o ator que interpreta o tenente Delmas balbucia, o cineasta escolhe manter a tomada, entretanto duplamente “ruim” uma vez que ouvimos ele mesmo, atrás, intimá-lo para que continue. É isso que já observava André S. Labarthe na época de Uma mulher é uma mulher [Une femme est une femme]: Godard mantém as quedas e as falhas, mesmo quando as tomadas estão comprometidas por um defeito técnico. A narrativa das vidas anteriores de Otto Goldberg é assim entrecortada por brancos, antes que o plano seja riscado por uma faixa pixelizada, deixando o espectador acreditar em um problema de projeção. Outro obstáculo à compreensão dos diálogos, as legendas em “navajo english”, língua truncada [petit nègre] concebida pelo cineasta para as projeções de Cannes, traduzindo uma frase inteira em apenas algumas palavras.

[NT: Impossível deixar de notar o racismo que impregna a linguagem, herança do colonialismo que ainda perdura como peça do vocabulário comum: petit nègre é como se chama o francês “mal falado” dos colonizados de antes e dos imigrantes de hoje. Expressões como “inglês navajo” e petit nègre marcam a herança racista da linguagem e, nesse sentido, pode-se entender a ideia de “resguardar todas as imagens da linguagem”, de Genet, como uma forma de interrogação dos poderes que se inscrevem na linguagem e, dessa forma, acabam por encerrar a deriva polissêmica e a disseminação das imagens, do sensível como resíduo inassimilável. Tomo a liberdade de repetir algumas palavras: Film Socialisme esvazia o espaço entre as línguas – sugerindo mais de uma vez que a linguagem em geral e o verbo “ser” (être) em particular tornam flagrante a falta de realidade – para abrir espaço para a realidade em toda a sua irredutível multiplicidade – nas imagens que buscamos no deserto, abrigando-as, resguardando-as da linguagem. Se o sol da linguagem e de sua sintaxe unificada que controla a deriva da imaginação inscreve uma herança racista, colonialista e violenta em nossas próprias palavras, é com a vertigem infantil de um balbucio sem nexo, de uma linguagem truncada, menor, de um “inglês navajo” ou de um petit nègre, que se torna possível, atacando o sol, perturbar sua sintaxe e abrir a possibilidade de, entre as imagens, adivinhar novamente a vida.]

O discurso, em Godard, é sempre uma questão da televisão. Aquele das crianças Martin que o France 3 Région (ou antes Regio, do nome do fundo de apoio romando que participou do financiamento do filme) vem filmar na parte central. Aquele também das “figuras” da televisão que o filme convoca em seu primeiro segmento: Bernard Maris e Dominique Reynié, esse último desaparecido na montagem, dois frequentadores assíduos de C dans l’air, mas também Alain Badiou, que se tornou em pouco tempo uma verdadeira estrela da tela pequena. Em “Nossas Humanidades”, o cineasta até mesmo dá aos narradores vozes da televisão: a de Odile Schmitt, a dubladora francesa de Eva Longoria, também a de Stéphane Henon, o brigadeiro Jean-Paul Boher de Plus belle la vie [Mais bela a vida].

Quando a jovem Florine reivindica o direito à palavra, ela se recusa a empregar o verbo ser, preferindo o verbo ter. “Não empreguem o verbo ser, por favor”, diz ela às jornalistas do France 3, antes de acrescentar: “Aí está, empreguem o verbo ter, tudo será melhor na França”. Primado do verbo ter que encontra um eco no filme que Godard realizou depois da morte de Eric Rohmer: “Empregar o verbo ter, isso dará retorno” [Employer le verbe avoir, ça reviendra], murmura a voz do cineasta. No capítulo 1A de História(s) do cinema, JLG faz soar um extrato da trilha sonora de Espoir [Esperança], de Malraux, que faz do verbo ser um problema revolucionário: “Os comunistas querem fazer alguma coisa. Você e os anarquistas, por razões diferentes, vocês querem ser alguma coisa. É o drama de toda revolução como esta…”.

8. Nápoles

Dois planos do filme de Antonioni aparecem na sequência consagrada a Nápoles, em “Nossas humanidades”. Campo: a estátua de uma Virgem com Criança é filmada em contra-plongée. Contracampo: um visitante de cabelos brancos, Antonioni em pessoa, se dirige à estátua. O olhar de Michelangelo não foi rodado em Nápoles, como deixaria supor a montagem godardiana, mas na basílica Saint-Pierre-aux-Liens de Roma. É nessa igreja que se encontra o célebre Moisés de Michelangelo que inspira Antonioni para seu antepenúltimo filme. O cineasta italiano se aproxima da estátua, a contempla, a acaricia com o olhar antes de deixar suas mãos deslizarem sobre o mármore. JLG repetiu com frequência que como cineasta, ele ainda preferiria perder o uso da visão antes que o de suas mãos, citando de novo em Film Socialisme as palavras de Denis de Rougemont: “Em manifesto há mão. Não um sentimento dissimulado, um ideal, um sorriso que expulsa o universo” [“Dans manifeste il y a main. Non pas un sentiment drapé, un idéal, un sourire qui congédie l’univers.”].

9. Animais

Ninguém terá deixado de observar o primeiro plano de Film Socialisme, que precede os créditos de abertura, esses dois papagaios sobre um ramo que parecem olhar o espectador. Que aviso eles nos dirigem? Arrisquemos uma hipótese: o roteiro conhecido sob o nome de “Animais”, redigido no fim dos anos 1980 por Godard, encontraria sua realização com Film Socialisme. Nessa história, comunistas, mulheres e crianças se sucedem no poder, derrubando a cada vez os precedentes, antes de se aliarem contra os animais. Essa evolução recupera, de uma certa maneira, aquela dos assuntos dos filmes do cineasta desde o fim dos anos 1960: políticos (A Chinesa [La Chinoise], os filmes do grupo Dziga Vertov), femininos (Carmen [Prénom Carmen], Eu vos saúdo Maria [Je vous salue Maire]), em seguida infantis, em primeiro lugar nos títulos (As crianças brincam na Rússia [Les enfants jouent à la Russie], A infância da arte [L’enfance de l’art]). Hoje, portanto, nós entraríamos no período animal de JLG.

A posteriori, pode-se reler a obra de JLG como uma grande narrativa historicista que desemboca enfim, com Film Socialisme, em um anti-humanismo, de onde resulta a onipresença dos animais: os dois gatos que tramam em um vídeo no começo; a lhama, o burro, e a vaca retratada na parede da cozinha da Família Martin; o crocodilo devorando um pássaro, o cordeiro do Holocausto; o rebanho de ovelhas que assalta os personagens de Week-End; o cão que sozinho reconhece Ulisses em seu retorno a Ítaca; e o burro que carrega a televisão. E a história do cinema para fechar o círculo: sobre os degraus da escada de Odessa, uma coruja em vigília enquanto soa a sirene da partida, lembrança misturada de Encouraçado Potemkin [Bronenosets Potyomkin] e de A Greve [Stachka], em que uma célebre montagem de atrações associa o rosto de um informante da polícia, de sobrenome “a coruja”, à imagem do pássaro da noite.

10. Crianças

É sem dúvida um outro indício da ligação que Film Socialisme mantém com “Os Animais”. Na primeira parte, “Coisas assim”, os animais que vemos, papagaios e gatos, são faladores e em casais, enquanto aqueles da garagem Martin são mudos e solitários. Ora, a repartição é exatamente inversa para as crianças, elas também divididas em dois grupos: os que olham e escutam, Alissa e Ludo, na primeira e, brevemente, na última parte do filme, e os que demandam e discorrem, Florine e Lucien, no fragmento central. Animais e crianças só podem se exprimir alternadamente, porque o poder não pode pertencer ao mesmo tempo a uns e a outros. E na segunda parte, cabe manifestamente às crianças fazer valer seus direitos. A juventudade é aliás seu principal argumento de campanha. “Ter vinte anos. Ter razão. Guardar a esperança. Ter razão quando o seu governo está errado”: tal é o programa que enuncia Florine diante de sua mãe no banheiro. Não deixa de lembrar a fórmula de Péguy em Nossa Juventude [Notre jeunesse] (1910), colocada na capa de L’Express de 3 de outubro de 1957 para anunciar o advento da Nouvelle Vague: “Vinte anos. Nós é que somos o centro e o coração. O eixo passa por nós. É no nosso relógio que será preciso ler a hora.”

De todas as personagens do filme, Florine é sem dúvida aquela que tem o texto mais importante, quase monopolizando a fala na parte central. Desde sua primeira aparição, apoiada na bomba de gasolina, um livro na mão, a garota está numa postura declamativa. Como o Jean-Pierre Léaud de A Chinesa e de Week-End, ela representa novamente de um modo teatral a Revolução Francesa. No romance que ela lê então, uma personagem de atriz tem o mesmo nome. Florine, heroína particularmente precoce da Comédia Humana [Comédie Humaine], aparece com efeito em Ilusões Perdidas [Illusions Perdues], em que ela se torna célebre graças aos jornalistas que cobrem seus primeiros passos no Panorama Dramático [Panorama Dramatique], e em particular graças ao artigo de Lucien de Rubempré, o protagonista da história. Florine e Lucien, os dois nomes encontram portanto sua origem no texto de Balzac. Em um plano da primeira parte, Ludo dá a Alissa um exemplar de um romance de Gide, A Porta Estreita [La Porte Etroite], que ela abre imediatamente. Romance cuja heroína se chama, precisamente, Alissa. Assim se explica talvez, além do jogo com os títulos, a serenidade e a segurança das quatro crianças do filme face à inquietação dos adultos: enquanto esses últimos penam para se exprimir, os primeiros sabem seu texto de cor. Florine, declara Lousteau em Ilusões Perdidas, “é a maior leitora de romances que há no mundo”. E antes que ela entre em cena, Du Bruel, o autor da peça, dá a ela as últimas recomendações:

“- Minha pequena Florine, você sabe bem seu papel, hein? Nada de falta de memória. Cuide da cena do segundo ato, mordaz, delicada! Diga bem: Eu não o amo, como nós combinamos.”

Várias vezes no filme, o pai de Florine lhe colocará a questão: “Ok, Flo, mas por que você não nos ama mais?” Tal é também o objeto do conflito de gerações no cerne de Film Socialisme: a incompreensão entre os que querem representar um papel e os que demandam um diálogo.

11. Barcelona

Nos créditos do filme, entre os “Videos”, Godard inscreve Roman Karmen, o documentário realizado por Patric Barbéris e Dominique Chapuis sobre o propagandista do regime soviético. O oficial cineasta foi com efeito, em seus primórdios, correspondente de guerra na Espanha. Algumas das imagens de atualidades que ele rodou então, montadas em 1939 por Esther Choub, constituíam a matéria principal de Espanha, quadro lírico da experiência espanhola. Nesse extrato, os navios vindos de Odessa que transportam as tropas soviéticas entram no porto de Barcelona, e são acolhidos por uma multidão entusiasta, imagens de júbilo que contrastam violentamente com o desembarque discreto, anônimo, que marca o final do cruzeiro godardiano e encerra a primeira parte de Film Socialisme.

12. Lendas

No artigo que consagra a Mediterrâneo nos Cahiers du Cinéma, em 1967, Godard confessa sua admiração pelo filme, e não hesita em comparar o jovem Pollet com Orfeu. Por mais curioso que seja, o elogio não é casual: o que retém a atenção de JLG é a maneira pela qual o filme transforma uma viagem turística em travessia mitológica, cria um Mediterrâneo lendário a partir de imagens documentárias. Film Socialisme é também, à sua maneira, uma coletânea de lendas. A do ouro espanhol por exemplo, considerado como uma maldição, uma vez que foi a ruína dos índios, dos espanhóis, serviu aos nazistas e foi, em dois terços, roubado dos soviéticos. Sem contar que o colar que Alissa carrega, feito de peças de ouro sem dúvida tomadas do tesouro por seu avô, a condena no fim do filme à morte. Em Face of Terror, obscuro filme de ação citado nos créditos de Film Socialisme, é o falecimento, em Barcelona, de uma jovem americana num estranho caso de terrorismo que impulsiona seu irmão a ir realizar a investigação no local. Palabras para Julia, o poema de José Agustín Goytisolo cantado por Paco Ibañez, já ouvido no começo do capítulo 2B das História(s) do cinema, retorna em duas vezes em Film Socialisme. Ele esconde uma outra falecida, Julia, a mãe do poeta, morta em um bombardeio a Barcelona em 1938. Há uma maldição em torno da capital catalã da qual será vítima por sua vez o Sr. Arkadin no filme de Welles. Barcelona é o lugar de um acontecimento misterioso que marca a um tempo o fim e a origem da viagem. Nessa curiosa composição em prisma que é também uma “porta estreita”, tudo começa e tudo acaba com a guerra da Espanha, como se pudéssemos ler aí, antecipadamente, o destino do século XX.

No capítulo 3B das História(s) do cinema, Godard rende uma homenagem emocionante a Henri Langlois: “Nós estávamos sem passado, e o homem da avenida de Messine nos fez dádiva desse passado metamorfoseado em presente, em plena Indochina, em plena Argélia. E quando ele projetou Espoir pela primeira vez, não é a guerra da Espanha que nos fez sobressaltar, mas a fraternidade das metáforas”. Fraternidade que é apenas o prolongamento de dois outros princípios do filme. Em primeiro lugar, a igualdade entre todas as imagens, venham de telefones portáteis ou de câmeras HD, de um video [direct-to-DVD] ou do Encouraçado Potemkin. Em seguida, a liberdade de comparar com o incomparável, um dos desejos de Florine na segunda parte. Liberdade, Igualdade, Fraternidade: aí está a fórmula da metáfora.

Arthur Mas, Martial Pizani

Primeiro de julho de 2010

(Obrigado a Jean-Louis Leutrat)


Film Socialisme 12.jpg

Film Socialisme
Jean-Luc Godard
França, Suíça, 2008
Com: Catherine Tanvier;
Christian Sinniger;
Agatha Couture;
Eye Haidara;
Marie-Christine Bergier;
Nadège Beausson-Diagne;
Mathias Domahidy;
Quentin Grosset;
Olga Riazanova;
Maurice Sarfati.
Duração: 1h42
Data de lançamento:
19 de maio de 2010.