Um dos fantasmas que assombra qualquer leitura de Film Socialisme é a alegoria. Da estrutura em três mo(vi)mentos às legendas que se dispersam em fragmentos sobre a tela, o filme parece insinuar uma visão transcendental, como se em algum momento fosse possível vislumbrar ou reconstituir, na cifra alegórica das imagens e de sua orquestração assinada por Jean-Luc Godard, a máquina do mundo. No entanto, em nenhuma das pedregosas estradas que qualquer espectador é levado a trilhar se apresenta e se entreabre o todo, mesmo que num relance. Se há alegoria em Film Socialisme, é uma alegoria espectral, como um resto ou um vestígio incorpóreo.
Na Revista Cinética, Fábio Andrade argumenta que, em Film Socialisme, Godard constrói uma coleção polifônica de cacos em que “não parece haver mastermind possível”, ao contrário do que aconteceria em Histoire(s) du cinéma, Eloge de l’amour e Notre musique, nos quais “um raciocínio particular do diretor” organiza “os estilhaços da História” numa totalidade. No Quadrado dos loucos, Bruno Cava compara a figura de Godard no campo do cinema à figura de James Joyce no campo da literatura e escreve: “Como em Finnegans Wake, o conjunto não admite síntese ou sinopse, numa lógica fragmentária, em que cada fragmento desestabiliza a narrativa como um todo e estilhaça o tempo-espaço. Sobram cacos de imagens e ruídos.”
Nesse sentido, Film Socialisme pode ser considerado uma tentativa de aprimorar o projeto modernista a que remetem, de uma forma geral, a obra de Godard e toda a nouvelle vague. No entanto, é importante destacar que existem tentativas de leitura analítica do filme que procuram reconstituir narrativas, compor um quadro geral, sendo um dos principais exemplos o texto de Arthur Mas e Martial Pisani no Independencia, que traduzi para o português.
1. O navio como alegoria da comunidade
No site oficial de Film Socialisme, a obra era definida como “uma sinfonia em três movimentos” (une symphonie en trois mouvements). Naquele que pode ser considerado o primeiro mo(vi)mento de um filme-sinfonia, o cruzeiro Costa Concordia assume um ar alegórico, representando a condição babélica do mundo contemporâneo e, em especial, da Europa. Se Godard está interessado em interrogar o lugar ocupado pela Europa no mundo contemporâneo, sua interrogação começa por revelar o estado de mobilidade, de fluxo, de liquidez em que transitam as coletividades, os apegos e os pertencimentos. Sobre as águas, o navio segue seu curso, singrando o Mediterrâneo como um microcosmo. O espaço do navio se revela cosmopolita em sua Babel. Uma das vozes da polifonia pode dizer, numa citação que ressoa sobre o plano de uma bandeira que tremula ao vento: “Você tem toda a razão: eu não amo nenhum povo. Nem francês nem norte-americano nem alemão. Nem o povo judeu nem o povo negro. Eu amo unicamente meus amigos, quando os há, nada mais.” / “Vous avez tout à fait raison : je n’aime aucun peuple. Ni français ni nord-américain ni allemand. Ni le peuple juif ni le peuple noir. J’aime uniquement mes amis, quand il y en a, rien d’autre.” (Por algum motivo, suponho que isso seja de Hannah Arendt. Alguém confirma?). Espalhadas sobre o plano, as legendas começam sua fragmentação sem sintaxe com um belo verso de um haikai em inglês navajo: “nolove any people”. Um cosmopolitismo babélico se insinua na figuração do navio como comunidade sem língua comum, singrando os mares da história.
2. A família como alegoria do governo
No segundo mo(vi)mento, a família Martin e seu posto de gasolina parecem funcionar como uma alegoria das formas de organização e de integração política e econômica que marcam o mundo contemporâneo, recontextualizando a alegoria no fórum da casa, na domesticidade familiar como espaço controlado – e, portanto, disputado – que representa a coletividade e transferindo a ênfase da questão do comum para a questão do governo. Em primeiro lugar, trata-se de uma alegoria da França e, portanto, da nação em meio aos fluxos da globalização: após dizer que a França “corre hoje o maior risco de sua história” (La France court aujourd’hui le plus grand risque de son histoire), o pai da família argumenta que “é preciso saber dizer ‘nós’ para poder dizer ‘eu'” (Il faut savoir dire “nous” pour pouvoir dire “je”). Em segundo lugar, da Europa, como sugere o plano que separa o primeiro e o segundo mo(vi)mentos do filme-sinfonia, estampando, em letras brancas sobre um fundo preto, as palavras “QUO VADIS EUROPA”, que podem ser traduzidas (salvo engano) por algo como “PARA ONDE VAI EUROPA”, assim mesmo, como uma afirmação, sem qualquer sinal gráfico de interrogação. Em terceiro lugar, mais abstratamente, trata-se de uma alegoria da constituição de coletividades em geral, em diversos níveis – da família à humanidade, passando pela nação. As crianças da família, Florine e Lucien, questionam seus pais sobre liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto uma repórter e uma cinegrafista realizam tentativas de entrevistas para um canal de televisão. Em meio a conversas sobre soberania, eleições, lei, poder, Estado, governo e outros temas politicamente carregados, projeta-se uma utopia (in)comum: é como se as crianças se libertassem de sua condição de presos políticos – a frase “As crianças são prisioneiros políticos” é discutida por Deleuze em Conversações e atribuída a um programa de televisão intitulado “Seis vezes dois” (Six fois deux), realizado por Godard e por Anne-Marie Miéville. Mais, é como se a libertação das crianças de sua condição de presos políticos fosse capaz de perturbar, decisivamente, as formas de governo de si e dos outros que fundamentam a vida psíquica e a vida social nas condições atuais.
3. A figura da escadaria como alegoria da história
No terceiro mo(vi)mento, uma vertiginosa montagem entrelaça imagens de arquivo – retiradas de filmes (como Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein), de noticiários televisivos, de transmissões esportivas – e reflexões por meio de falas e citações em mais de uma voz over. A vertigem da montagem de imagem e de som remonta à vertigem do tempo, propondo genealogias especulativas de inúmeros fenômenos – históricos ou míticos – que remetem à constituição do mundo em que vivemos, no qual o Mediterrâneo desempenha um papel crucial, embora não exclusivo. Do surgimento conjunto da democracia e da tragédia em Atenas ao conflito entre Israel e Palestina, passando pelas Cruzadas, pelo tráfico de escravos e pelo ouro do Sudão, pela Revolução Russa, pelo fascismo e pelo nazismo – as “Nossas humanidades” (Nos humanités) se revelam atravessadas pela guerra e pela “covardia, a prostituição e a traição” (la lâcheté, la prostitution et la trahison) que podem (ou parecem) comprar a liberdade. No cerne do terceiro mo(vi)mento de Film Socialisme, a cena da escadaria de Odessa em Encouraçado Potemkin articula os múltiplos sentidos da história e de seus mitos, investigados pela vertigem especulativa de Godard, aos fios narrativos do primeiro mo(vi)mento: o Costa Concordia chega a Odessa e as escadarias são revisitadas como atração turística, entre o Egito e a Palestina, de um lado, e a Grécia, Nápoles e Barcelona, de outro. Quando até mesmo a história, seus monumentos e vestígios se converteram em atrações de um parque temático – o mundo dito globalizado – é preciso encontrar novamente sua alteridade. Na figura da escadaria, como um eco do Angelus Novus de Paul Klee, inscreve-se uma imagem dialética da história.
Para compreender o caráter dialético da imagem da história inscrita na figura da escadaria, é interessante lembrar a definição de pensamento dialético que um fotógrafo que está a bordo do Costa Concordia oferece no primeiro mo(vi)mento do filme, citando Jean-Paul Sartre: “Um pensamento dialético é, em primeiro lugar, num mesmo movimento, o exame de uma realidade, na medida em que ela faz parte de um todo, na medida em que ela nega esse todo e na medida em que esse todo a compreende, a condiciona e a nega. Na medida em que, por consequência, ela é de uma vez positiva e negativa em relação ao todo. Na medida em que seu movimento deve ser um movimento destrutivo e conservador em relação ao todo.” (“Une pensée dialectique c’est d’abord, dans un même mouvement, l’examen d’une réalité, en tant qu’elle fait partie d’un tout, en tant qu’elle nie ce tout et en tant que ce tout la comprend, la conditionne et la nie. En tant que par conséquence elle est à la fois positive et négative par rapport au tout. En tant que son mouvement doit être un mouvement destructive et conservateur par rapport au tout.”)
Insinuando e perturbando ao mesmo tempo as alegorias que abriga em fragmentos descontínuos, descosturados, Film Socialisme apresenta uma estética disjuntiva que reproduz e repercute formalmente a sua riqueza temática. A Babel das línguas, das legendas e dos pequenos abismos que as separam ou aproximam entre si se torna visível no entrelaçamento de imagens heterogêneas – desde as de câmeras digitais de alta resolução até as de câmeras de telefones celulares, que remetem às imagens amadoras e seu mundo de borrões, enquadramentos trêmulos e formas inconstantes, cuja explosão marca a experiência imagética contemporânea. A alta resolução, combinada a uma fotografia que exacerba as cores até o limite da irrealidade, resulta em imagens que lembram a publicidade e seu mundo de cores muito bem corrigidas, efeitos calculados e comportamentos programados. Além disso, é no vínculo entre ideia e imagem – uma questão central do filme – que Alice Furtado, na Contracampo, encontra a analogia entre a publicidade e a proposta estética de Godard, em que se trata menos de narrar do que de pensar com imagens, sobre as imagens e através das imagens. O tratamento e a montagem do som aprofundam o jogo babélico, dando às relações entre campo e fora-de-campo uma ambivalência irredutível por meio de uma ênfase incomum nos excessos, nos ruídos irreais do vento sobre o microfone, nos barulhos monótonos ou ensurdecedores do restaurante, das conversas e das festas a bordo do cruzeiro.
Em geral, a relação entre campo e fora-de-campo é complementar e o espectador liga um ao outro por meio de indicações visuais (como as linhas dos olhares das personagens visíveis na tela, que sugerem a presença de elementos dramáticos relevantes além dos limites do quadro) e de elementos sonoros (como uma voz que soa sem que vejamos de onde vem, insinuando um espaço complementar que pertence igualmente ao espaço diegético representado no campo da imagem).
Em Film Socialisme, por sua vez, o que marca a relação entre campo e fora-de-campo é um duplo vínculo que se poderia chamar de suplementaridade. A noção de suplementaridade remete ao filósofo franco-argelino Jacques Derrida. Trata-se de uma lógica dupla e indecidível, segundo a qual as relações entre dois elementos deixam de ser compreensíveis a partir de noções simples de causa e efeito, revelando-se indecidíveis. No caso de Film Socialisme, o campo não é a causa do fora-de-campo, nem o contrário, permanecendo indecidível o vetor de causalidade de sua relação entre si, na medida em que não se encontra a origem em nenhuma das partes. O campo suplementa o fora-de-campo e o fora-de-campo suplementa o campo: um substitui o que falta no outro e ao mesmo tempo um se acrescenta de forma excessiva, transbordante, em relação ao outro: há sempre excessos que, de um lado e de outro, em vez de permitirem o fechamento da diegese como se fossem as peças que faltam num quebra-cabeça, fraturam e despedaçam a continuidade espaço-temporal, compondo um mosaico de pouca solidez. Cabe a nós – como participantes ativos na construção de sentidos de uma obra de arte, e não espectadores passivos de um produto de entretenimento fechado que assume o estatuto de uma mercadoria – adivinhar ou inventar a figura geral desenhada pelos pequenos fragmentos descontínuos que compõem o mosaico líquido de Film Socialisme. Foi isso que tentei começar a fazer nesse texto.