Fotografia e gêneros pictóricos
Se a heliografia de Niépce, produzida em 1826 ou 1827, pode ser identificada com o gênero pictórico das paisagens, o daguerreótipo datado de 1837 em que Daguerre fez representar um canto de seu ateliê de trabalho pode ser identificado com o gênero da natureza-morta. É uma imagem inaugural, à sua maneira, e dá a ver muito pouco, quase nada, embora o que resguarda não caiba em nossos olhos.
A apresentação pública da fotografia será feita quase dois anos mais tarde, no dia 19 de agosto de 1839, por François Arago, numa sessão conjunta da Academia Francesa de Ciências e da Academia Francesa de Belas Artes. Depois da publicação de uma notícia de jornal enaltecendo o novo invento, apesar de suas limitações, e depois da decisão do governo francês de comprar a patente do processo da daguerreotipia e convertê-lo em patrimônio público, Arago se encarrega de descrever o processo que resultou das experiências de Daguerre na década anterior, desde o estabelecimento da parceria com Niépce, em 1829. Entre as experiências, está a “Nature morte avec bas-relief d’après Jean Goujon” (em tradução livre: “Natureza morta com baixo relevo a partir de Jean Goujon”).
A identificação de imagens fotográficas com tradicionais gêneros pictóricos constitui uma das práticas mais fundamentais do contexto de emergência da fotografia e corresponde a uma espécie de desejo de enquadramento, de vontade de classificação, com o intuito de tornar familiar o desconhecido, de abrigar o novo nas formas visuais já estabelecidas. Além disso, o longo tempo de exposição necessário para a fixação da imagem nos primeiros experimentos fotográficos bem sucedidos – que diminuiu, gradativamente, das horas que Niépce esperou, em 1826-7, até os minutos necessários para a daguerreotipia – confere à natureza-morta interesse singular, devido à imobilidade dos objetos inanimados que se espera encontrar em imagens desse gênero.
O nome de Jean Goujon vincula a natureza-morta de Daguerre, de 1837, ao Renascimento, representado pelo escultor e arquiteto francês do século XVI, autor de importantes baixos-relevos, como aqueles que se pode ver no pátio quadrado do Palais du Louvre, em Paris. A memória do Renascimento vem habitar a imagem, explicitada no título pelo nome de Jean Goujon e inscrita em sua superfície pelo registro do baixo-relevo no ateliê de Daguerre.
Se o baixo-relevo que se destaca à esquerda do daguerreótipo de 1837 constitui uma imagem dentro da imagem, assim como as esculturas de rostos angelicais e o quadro que se pode ver no centro, é porque a fotografia aparece, de saída, como imagem de (mais de) uma imagem, como meta-imagem, como aparelho cuja potência inclui a possibilidade de constituição de uma metalinguagem das imagens e, fundamentalmente, das formas artísticas.
O aparelho meta-imagético
Walter Benjamin soube reconhecer, aproximadamente um século depois do daguerreótipo de 1837, em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, as transformações que o advento da fotografia significou para as formas tradicionais de arte. A reprodução de obras de arte conduz, segundo Benjamin, à redução da importância tradicionalmente atribuída ao “valor de culto”, que decorre da unicidade da obra de arte e de sua inserção em um contexto ritual (não necessariamente religioso em seu conteúdo, mas fundamentalmente religioso em sua forma).
Com as técnicas de reprodução, como a fotografia e o cinema, o “valor de exposição” ganha precedência sobre o “valor de culto”. A situação cada vez mais recorrente e a exigência cada vez maior de visibilidade das obras interrompe o reinado da unicidade e da autenticidade, instaurando um regime de reprodutibilidade generalizada. No daguerreótipo, contudo, esse regime se insinua de forma limitada, pois a imagem que reproduz o mundo é, em si, sempre única, não reprodutível como imagem (do modo que caracterizará técnicas posteriores de fotografia).
Talvez o daguerreótipo da natureza-morta de Daguerre condense alguns aspectos da passagem da predominância do “valor de culto” para a predominância do “valor de exposição” que não foram discutidos por Benjamin ou que seu ensaio abordou de modo apenas passageiro. Em primeiro lugar, é possível reconhecer que, na transformação ocasionada pela reprodutibilidade técnica, as formas da arte – seus gêneros, seus temas, seu imaginário – convertem-se em repertório da fotografia, que se volta a elas em busca de modelos, de referências, em suma, de contexto. Assim, no daguerreótipo de 1837, Daguerre fez aparecer a memória da arte, representada metonimicamente pela cifra do nome “Jean Goujon”, como o contexto em que a daguerreotipia emerge, em relação ao qual ela se define, como meta-imagem, herdando-o e negando-o ao mesmo tempo.
Em segundo lugar, uma vez que a imagem de Daguerre contém objetos artísticos que são, em si, imitações de outros objetos artísticos (“d’après Jean Goujon”) e objetos não artísticos (a mesa ou balcão, alguns instrumentos ou ferramentas que se pode entrever sobre eles, o recipiente trançado ao lado do quadro na parede), pode-se perceber que as transformações que o aparelho impõe ao regime visual da arte participam de um conjunto mais amplo de transformações, que ultrapassam as formas da arte e afetam a experiência do mundo e as formas de sensibilidade que a tornam possível.
Dessa forma, em terceiro lugar, o daguerreótipo – que se constitui diretamente como imagem positiva (não há negativo na daguerreotipia, como nas técnicas posteriores que conduzirão à disseminação social da prática fotográfica) – situa-se no limiar de transformações da sensibilidade humana. Como imagem única, preserva a lógica da unicidade das formas tradicionais da arte e dos modos de experiência do mundo. Como meta-imagem, o daguerreótipo perturba a lógica da unicidade, pois torna possível a reprodução de imagens por imagens, incluindo a produção de daguerreótipos a partir de outros daguerreótipos. A dualidade liminar da daguerreotipia confere à natureza-morta de Daguerre, de 1837, uma potência de transbordamento, que nossos olhos permanecem, ainda hoje, incapazes de conter.