Ainda lidando com a dificuldade de An anagram of ideas on art, form and film, de Maya Deren, que só parece repetir algumas ideias sobre arte e cinema bastante difundidas (em debates sobre especificidade do meio, depuração formal ou Gestalt) na época em que foi escrito. Em meio a essa aparente repetição de ideias já sedimentadas, o livro inusitado – organizado e legível como um anagrama, isto é, em itinerários variáveis que sustentam uma mesma configuração geral – resguarda também a inscrição singular de uma questão. Em 1946, afinal, a escrita de Maya Deren está assombrada pela bomba atômica.
Essa questão assombrosa confere à escrita assombrada de Deren um sentido ético-político inaudito, subterrâneo, incerto. Talvez se possa reconhecer, na questão da bomba atômica, aquilo que perturba uma agenda com a qual Deren está relacionada (associada a termos como especificidade do meio, depuração formal ou Gestalt, como mencionei acima). Ao mesmo tempo, é no modo como Deren acaba lidando com essa questão, mesmo que de maneira nem sempre explícita, que talvez se possa reconhecer o interesse de uma (re)leitura do anagrama de Deren como um discurso ético-político sobre a arte e o cinema em meio ao que Günther Anders denominou era atômica, na qual a ameaça de uma guerra atômica “transforma nosso globo em um vasto campo de concentração do qual não há saída”.
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A bomba atômica: não a especificidade de cada meio como horizonte da experiência e da experimentação estética, mas uma espécie de meio absoluto, que, generalizando-se sobre tudo, aniquila toda variação de meios e homogeniza o que poderia haver de específico em cada um.
A bomba atômica: não a depuração formal da busca modernista pela essência das artes, mas a imposição da fixação definitiva de toda vida, todo mundo e todo o mundo em forma morta, pureza imponente da arte e da técnica quando reduzidas à condição de instrumentos.
A bomba atômica: não a configuração da Gestalt da forma artística, que é maior do que a soma de suas partes, mas a operação da Gestalt do fogo inextinguível que (como o napalm a que se refere o filme homônimo de Harun Farocki) se projeta como forma aniquiladora de suas partes.
Talvez seja preciso traduzir, ler e reler, interrogar “Um anagrama de ideias sobre arte, forma e cinema”, de Maya Deren, como uma alegoria filosófica da era atômica como época técnico-artística à qual insistentemente pertencemos, ainda que nem sempre nos lembremos disso.
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Como ler, por exemplo, uma frase como “The history of art is the history of man and of his universe and of the moral relationship between them”, no cap. 3c? Como tornar legível o que define, quando Maya Deren escreve esta frase, a relação entre “homem” e “universo”?
Se consideramos outros trechos do livro, é talvez com a assombração da energia nuclear, o espectro da aniquilação total e o fantasma da bomba atômica que será preciso relacionar tanto os problemas estéticos quanto os problemas morais que Deren discute e que, para ela, são inseparáveis.
Na primeira frase do cap. 1a, já estamos diante de uma suposta “inertia of the people towards the atom bomb”, que Deren justifica como decorrente de uma aceitação da ciência, em geral: “The almost casual acceptance of the use of atomic energy is, if anything, testimony to man’s complete adjustment to science”.
Se a ciência está relacionada a uma “long series of achievements, some of which, like electricity and the radio, have had far more the quality of miracle”, diante da energia e da bomba atômica, “the miracle-makers themselves, at this late date, seem to be attempting to reopen the first of all questions: to bite or not to bite of the forbidden fruit.”
Reaberta, essa questão é também uma questão poética, isto é, a um tempo, segundo a perspectiva de Deren, estética e moral, e é significativo que, como ela escreve, “man might find poetic justice in an atomic bomb formed in the shape of an apple.” No decorrer de todo o texto, Deren parece se inquietar diante da possibilidade de “justiça poética” associada a “uma bomba atômica formada com os contornos de uma maçã”, perguntando: o que pode a arte? O que pode o cinema?
A resposta dela é longa, eventualmente limitada por preocupações puristas características de um certo modernismo, de que é uma das herdeiras mais inventivas no campo cinematográfico. Mas o que me parece mais interessante é que é uma resposta assombrada pela relação com a bomba atômica.
Deren conclui o cap. 1a com um reconhecimento da bomba atômica como uma espécie de realização estética: “That which the sur-realists labor and sweat to achieve, and end by only simulating, can be accomplished in full reality, by the atom bomb.”
No restante do livro, talvez suas propostas possam ser (re)lidas como uma tentativa de descobrir e inventar (dois termos cruciais para sua agenda artística), na arte e no cinema, alguma capacidade de lidar com a bomba atômica (e com o horror da guerra, ao qual ela também se refere de forma bastante contundente).
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Estas notas reverberam com um desses interesses de pesquisa que, embora não completamente distantes do que tenho estudado, tem sido difícil levar adiante de modo mais rigoroso: interrogar a experiência histórica associada à era atômica, isto é, à época em que nos encontramos, na qual bombas atômicas existem e pesam sobre a existência como uma ameaça irredutível de aniquilação total. Essa interrogação deve ser ética e estética, moral e política.
Apontei brevemente para isso em um trecho curto de Do inimaginável, no cap. 2, “Campos, contracampos”, em meio a uma discussão que se detém sobre as imagens dos campos nazistas. Estou pensando especialmente em três parágrafos, nas páginas 70 e 71 do livro, que reproduzo a seguir:
No dia 06 de agosto de 1945, sobre a cidade de Hiroshima, e no dia 09 de agosto do mesmo ano, sobre a cidade de Nagasaki, as nuvens em forma de cogumelo estenderam seu poder de destruição. Com isso, a Força Aérea dos EUA inaugurava o que, em 1962, Günther Anders denominou era atômica (2013). Assim como a intensidade explosiva do teste nuclear realizado pelo governo estadunidense no Novo México em segredo e registrado por três câmeras diferentes (a pouco menos de dez quilômetros de distância), em 16 de julho de 1945, as explosões nucleares de Hiroshima e de Nagasaki foram filmadas. Porém, foi em primeiro lugar por meio do registro de seus efeitos sobre a população japonesa nos dias que se sucederam às explosões, que o inimaginável poder de destruição da era atômica se inscreveu em um arquivo de imagens da devastação.
Enquanto as imagens da abertura dos campos nazistas participaram do trabalho coletivo de elaboração da memória da Shoah, que fundamentou, no imediato pós-guerra, a codificação jurídica do inimaginável, as imagens da devastação atômica delimitam um horizonte de futuro que assombra também a consolidação da legislação internacional dos direitos humanos durante a Guerra Fria. De fato, a ameaça de devastação atômica – que paira, nesse período, sobre a polarização política entre EUA e União Soviética – define um dos limites da codificação jurídica do inimaginável. A possibilidade de catástrofe nuclear permanece fora dos horizontes do direito internacional, exceto de forma tangencial, com o Tratado de Não-Proliferação, adotado em 1968 e em vigor desde 1970. Os bombardeios de Hiroshima e de Nagasaki não foram tipificados como crimes e não chegaram, portanto, a ser julgados em nenhum tribunal ou fórum jurídico-político.
Enquanto o arquivo visual do mal composto pelas imagens da abertura dos campos e pelo trabalho de memória que inauguram está associado ao processo de codificação jurídica do inimaginável por meio dos conceitos de “crimes de guerra”, “crimes contra a humanidade”, “crimes contra a paz” e “genocídio”, o arquivo de imagens da devastação composto pelos registros dos efeitos das bombas atômicas estadunidenses que explodiram sobre Hiroshima e Nagasaki não encontra inscrição jurídica. Ele escapa à codificação e permanece associado, fundamentalmente, a um horizonte planetário de destruição universal. Se as imagens da abertura dos campos evidenciam a destruição da dignidade humana (contra a qual a Declaração de 1948 consagra seus princípios universais de direitos humanos), as imagens da devastação nuclear insinuam a possibilidade de destruição sobre todo o planeta. Uma vez que a era atômica converte toda a superfície do planeta em “um vasto campo de concentração do qual não há saída” (Anders, 2013, p. 4), parte da história que se inicia em Hiroshima e Nagasaki consiste na projeção da forma política do campo, que foi crucial para a máquina nazista de extermínio, sobre toda a superfície do globo terrestre.
Nos últimos dias, ao ler o anagrama de Deren pela primeira vez, fiquei pensando como ela e sua obra talvez possam ser situadas em relação à bomba atômica. Quem sabe essas notas indiquem alguns itinerários a seguir.