O terceiro título apresentado no livro 1001 filmes para ver antes de morrer é O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), de D. W. Griffith.
Ao avanço formal da linguagem cinematográfica, representado pela eficácia da montagem, pelo equilíbrio dos planos e pelo papel dramático da trilha sonora original (que é analisada por Ney Carrasco em Sygkhronos: a formação da poética musical no cinema), procura-se opor o atraso da “mensagem” racista, do conteúdo evidenciado pelos enfáticos letreiros, pelas imagens estereotipadas e pelos significados que a narrativa codifica dramaticamente, constituindo, de fato, um mito de fundação da nação estadunidense sob o signo da supremacia branca. Dessa forma, torna-se possível dizer que o filme de Griffith é racista (e disso não deve restar dúvidas) e, ao mesmo tempo, na medida em que esse julgamento não afeta a compreensão dos aspectos formais do filme, afasta-se das configurações clássicas da linguagem cinematográfica a sombra de qualquer questionamento ético e de toda análise de sua dimensão política.
Se O nascimento de uma nação permanece atual, entretanto, não é apenas pela herança estética que, ainda hoje, no cinema de Hollywood e em suas derivações, se pode associar ao nome de Griffith, como um momento originário. É também por sua herança política, relacionada sobretudo à persistência da raça como uma categoria social crucial na construção dos Estados Unidos da América como nação e como império, que o filme deve ser revisto. Contra as interpretações que despolitizam seus sentidos e separam a estética e a ideologia, a técnica e o simbólico, esboço alguns traços de uma leitura des(cons)trutiva desse filme que projeta sua luz sobre toda a história do cinema desde 1915, quando marca a emergência do chamado cinema narrativo clássico. É preciso reconhecer o caráter político das estéticas cinematográficas (e não somente das eventuais “mensagens” que os filmes veiculam). Nesse sentido, a leitura de O nascimento de uma nação passa pela compreensão do nó em que se entrelaçam os topoi (lugares comuns) da linguagem cinematográfica e os tropos (figuras de linguagem, derivas e giros de sentido) sinuosos da ideologia, tornando sensível o mundo comum em que convivem indivíduos e coletividades.
A emergência do cinema clássico
É com base na experiência que acumulou como diretor de curtas-metragens na American Mutoscope and Biograph Company, entre 1908 e 1914, que Griffith consegue, junto com outros cineastas de sua geração, se afastar gradualmente das formas expressivas do “cinema de atrações” – que marcam fortemente Viagem à lua (1902), de Georges Méliès, e O Grande Roubo do Trem (1903), de Edwin Stanton Porter – e definir as convenções do realismo e do naturalismo da Hollywood clássica como uma forma de cinema institucional. De fato, é nos curtas que Griffith se revela mais inventivo e mais determinante para a linguagem cinematográfica, e o longuíssimo O nascimento de uma nação pode ser considerado uma obra menor que reúne e condensa inovações anteriores. Aliás, o fato de se tratar de um filme de cerca de três horas de duração (em contraposição à duração curta que predominava nas produções da época e de antes) é mais importante do ponto de vista do mercado do que do ponto de vista da linguagem (embora uma coisa acabe por se relacionar à outra), porque marca uma passagem entre diferentes modos de produção e de consumo das imagens cinematográficas.
Nos vinte anos que separam o advento do cinematógrafo Lumière e o lançamento de O nascimento de uma nação, desenrola-se um processo múltiplo de transformações nos usos e no modo de produção do cinema. A divisão do trabalho que conhecemos hoje, em que produção, distribuição e exibição tendem a ser momentos institucionalmente distintos (embora possam eventualmente coincidir), começa a tomar forma à medida que a atividade cinematográfica se converte numa arte industrial. Quando os filmes passam a ser alugados aos exibidores, e não vendidos, o que está em jogo é o controle sobre o resultado final oferecido ao público. E o público também muda: até o final da década de 1900, era composto predominantemente por operários e imigrantes, frequentando casas de espetáculo de variedade que incluíam exibições de vistas cinematográficas como parte de suas atrações. Em vez do espetáculo de variedades, o público do cinema clássico está interessado em encontrar no cinema os traços de “alta cultura” associados ao teatro melodramático burguês e ao romance na literatura do século XIX. (Sobre as transformações que estão em jogo na passagem do chamado primeiro cinema ao cinema narrativo clássico, recomendo a leitura de Primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação, de Flávia Cesarino Costa.)
Correspondendo aos interesses do público burguês (e pequeno-burguês) a que se dirige o cinema institucional, o filme de Griffith começa com um apelo pela “art of the motion picture”, no qual está em jogo a reivindicação da liberdade de mostrar “the dark side of wrong” em nome da iluminação do “bright side of virtue”. Trata-se de fazer do cinema uma arte comparável à Bíblia e a Shakespeare, contra (em última instância) seus usos populares nas casas de espetáculo de variedade, de forma alguma enobrecedores e insistentemente carnavalescos, além de serem alvos da censura em nome dos “bons costumes” e das “belas artes”. Não é, contudo, em uma obra tradicional do cânone ocidental que Griffith vai basear a narrativa de seu filme, mas num romance menos conhecido, The Clansman (1905), de Thomas F. Dixon Jr. (que o próprio autor se encarregou de transformar em peça de teatro, antes da adaptação cinematográfica). Assim como as obras de Dixon, o filme de Griffith narra o surgimento da Ku Klux Klan após a Guerra de Secessão (1861-1865), enaltecendo a organização racista que defende a supremacia branca, como se fosse a responsável pela sustentação da unidade nacional dos EUA.
As máscaras da montagem: narrativa e continuidade
Embora reivindique para o cinema o mesmo reconhecimento do teatro e da literatura, O nascimento de uma nação não se resume à imitação dos modelos narrativos teatrais e literários que toma como referência. A narrativa de Griffith está longe de depender dos letreiros (ou de outra forma verbal de narração, como a figura do comentador no espaço de exibição) e não se deixa reduzir ao chamado “teatro filmado” (um termo muito problemático) a que muitas vezes se associa o cinema dos primeiros tempos. Griffith orquestra uma série de recursos expressivos que se desenvolveram no processo de experimentação dos vinte anos anteriores, entre os quais se destaca uma multiplicidade de modulações da montagem.
Em primeiro lugar, a montagem costura as cenas em que se pode dividir a trama, intercalando imagens e letreiros, sempre ao som da música original. Nesse sentido, a montagem das imagens define a linearidade da narrativa, com o auxílio das informações escritas dos letreiros e das informações sonoras da música. A trama da montagem linear orienta o espectador com as informações importantes para a construção da fábula e mascara a descontinuidade generalizada que define o processo de produção de um filme e até mesmo a tecnologia de sua projeção, em que a ilusão de movimento tem como base imagens descontínuas. Em O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, Ismail Xavier fala em “descontinuidade elementar” e sugere que uma das características do cinema clássico hollywoodiano e do cinema dominante em geral é justamente a tentativa de neutralizar e mascarar a descontinuidade.
Um exemplo de montagem analítica
Além disso, a montagem divide internamente as cenas. Em vez de mostrar um plano geral em que toda a ação se desenrola, Griffith opera o que se costuma chamar de decupagem da ação, configurando a montagem analítica. O termo “decupagem” remete ao francês découpage, do verbo découper, que significa “cortar” ou “recortar”. No já citado O discurso cinematográfico, Ismail Xavier define a decupagem como “o processo de decomposição do filme (e portanto das sequências e cenas) em planos”.
A estrutura clássica de cada sequência de planos – o equivalente cinematográfico da cena teatral como conjunto integrado de unidades dramáticas – pode ser descrita como um esquema que (1) começa pela apresentação do espaço da ação em um plano geral, (2) passa a uma série variável de planos intermediários mais aproximados (incluindo closes dramáticos que Griffith maneja com eficácia) e (3) volta ao plano geral sempre que há alguma alteração significativa na disposição dos personagens, por exemplo, até (4) o encerramento da sequência, seja num plano geral que condensa elementos significativos da ação transcorrida, seja num plano aproximado que enfatiza um ou outro aspecto mais relevante para o andamento da narrativa. Na análise das cenas que a montagem torna possível, definem-se as convenções da escala de planos (denominações como plano geral, plano médio, plano americano, close etc.) e a mobilidade do ponto de vista deve ser construída de acordo com regras que mascarem os efeitos de descontinuidade de todo corte.
Exemplos de montagem alternada
Ademais, Griffith utiliza a montagem, como fez Edwin S. Porter, para dispor em sequência na tela ações que acontecem simultaneamente e em espaços diferentes na narrativa. A montagem alternada ou paralela permite representar, de forma articulada, eventos que ocorrem dentro e fora de uma casa ou em cidades e locais diferentes envolvidos em batalhas ou em decisões importantes na guerra, configurando, no cinema, um equivalente do “enquanto isso” da linguagem verbal. Em seu livro Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo, Benedict Anderson analisa a importância do “enquanto isso” como dispositivo de imaginação da comunidade nacional, em romances, notícias de jornal e outros contextos. Para resumir rapidamente um conjunto de argumentos que são, sem dúvida, mais complexos, pode-se dizer que, ao demarcar a simultaneidade de ações em espaços distintos, o “enquanto isso” unifica o espaço da nação em termos imaginários. Com efeito, os letreiros auxiliam a montagem alternada em alguns momentos do filme, assegurando que a compreensão espectatorial ocorra conforme a intenção narrativa. Frequentemente, contudo, Griffith se desfaz dos letreiros e faz do “enquanto isso” uma mensagem que, embora não seja visível como tal, mascara com sua intensidade imaginária a descontinuidade entre sequências, ações e espaços.
Por fim, a montagem permite a realização de inserções das mais diversas informações que a escala convencional de planos não permite mostrar aos espectadores, como cartas e jornais lidos pelos personagens, ou representações de lembranças e recapitulações de acontecimentos do passado (flashbacks). Entre as inserções, encontram-se também resquícios bastante evidentes do “cinema de atrações”, em que o olhar na direção da câmera inscreve no cerne do fluxo narrativo um elemento exterior à narrativa, como quando vemos um abolicionista e uma criança negra, no início do filme.
Exemplos de inserções
Exemplos de closes dramáticos
Em sua maioria, as inserções estão marcadas visualmente por uma máscara arredondada que suplementa o enquadramento. Esse tipo de máscara aparece também nos closes dramáticos que Griffith explora enfaticamente, seja na construção do melodrama romântico entre Ben Cameron e Elsie Stoneman (perturbados pela figura do mulato Silas Lynch, o protegido de Austin Stoneman, o pai de Elsie), que entretece a narrativa da guerra e de suas consequências, seja na sequência do assassinato de Abraham Lincoln no teatro, por exemplo, quando vemos o assassino e sua arma em planos com máscara. Ao suplementar o enquadramento dos planos com uma máscara que intensifica seus sentidos dramáticos, Griffith inscreve a montagem no interior do plano, sob a forma de intervenções na imagem. Associadas às intervenções nas imagens, as intervenções entre as imagens delimitam o conjunto de máscaras da montagem que cobre as descontinuidades irredutíveis do cinema.
As máscaras da identidade: raça e nação
Assim como os procedimentos de montagem, todas as formas da linguagem cinematográfica que O nascimento de uma nação articula não devem ser dissociadas das cadeias de efeitos simbólicos em que Griffith as insere. As máscaras da montagem – que procuram neutralizar as descontinuidades constitutivas do cinema em nome da construção da unidade dramática e da continuidade espacial e temporal – estão ligadas às máscaras dos discursos de identidade movimentados pelo filme: o racismo e o nacionalismo.
O racismo colonial-moderno opera sobre marcas fenotípicas, entre as quais se destaca a cor da pele, definindo uma contraposição de base entre brancos e não-brancos que corresponde a uma série de oposições hierárquicas, de ordem moral, intelectual ou estética. As marcas fenotípicas associadas à cor de pele branca são consideradas superiores, melhores, mais desejáveis do que aquelas associadas à cor de pele escura ou não-branca. Como um racismo fenotípico, sua operação central consiste em homogeneizar e unificar grupos humanos com base em características que são secundárias do ponto de vista do genótipo.
Os seres humanos se diferenciam e evidenciam suas singularidades, entre outras coisas, por meio do corpo, suplementando a primeira pele, a pele biológica, com sinais que se imprimem de forma temporária ou definitiva como uma segunda pele. No racismo colonial-moderno, as diferenças marcadas na segunda pele são achatadas e reduzidas à diferença fenotípica básica entre peles brancas e não-brancas. Além disso, a pele branca aparece como não-marcada, alçando-se à condição de universal (isto é, colonizando o universal a partir da dissimulação de suas particularidades), enquanto as peles não-brancas carregam as marcas da diferença. É por isso que, como argumenta Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas, o desejo que define o sujeito negro é um desejo cindido, dividido internamente, dilacerado entre o reconhecimento da própria diferença e a identificação com os signos da pele branca como representantes do universal.
Em O nascimento de uma nação, o racismo fenotípico é evidente, em primeiro lugar, nos letreiros que permeiam a narrativa, oferecendo interpretações das situações e ações de personagens, dando sentido à trama e orientando a compreensão do espectador. Entre as palavras que inscrevem o racismo fenotípico nos letreiros, encontram-se citações diretas de History of the American People, livro do presidente estadunidense entre 1913 e 1921, Woodrow Wilson, que inclui uma apreciação positiva da Ku Klux Klan da década de 1860. Além disso, a trama melodramática negocia sua moral (estou pensando no texto “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”, de Ismail Xavier no livro O olhar e a cena) em termos racistas mascarados por ideias pretensamente universais. O heroísmo branco da Ku Klux Klan é enaltecido contra a ameaça negra com base numa oposição estrutural entre virtude e erro, entre o Bem e o Mal.
Entre os componentes da trama melodramática que orienta a narrativa, destaca-se o tropo da “donzela em perigo” (cuja genealogia colonialista e imperialista foi analisada por Ella Shohat e Robert Stam, em Crítica da imagem eurocêntrica), que reproduz metaforicamente a interpretação simbólica da nação assolada pela guerra (articulada pelo filme). A certa altura, o renegado Gus persegue Flora Cameron, a irmã de Ben, com quem Gus pretende se casar, mesmo que à força. Na fuga, Flora acaba por pular de um penhasco e morre nos braços do irmão. Simbolicamente, Flora representa a nação em perigo, assolada pela guerra e depois pela ameaça da emergência dos negros – representados por Gus – a posições de poder, até que Ben Cameron funda a Ku Klux Klan e finalmente liberta e unifica a nação, punindo Gus com a morte e, metaforicamente, purificando a nação da ameaça negra de desunião. A purificação deve, contudo, ser repetida, interminavelmente, como fará a Ku Klux Klan e a violência racista cotidiana nos EUA, pois seu objeto está, desde o início, perdido, como a vida de Flora: a pureza nacional não é mais do que a memória sonhada, o delírio sem base de um passado inexistente.
Como o exemplo de Gus indica, para promover o racismo e a ideologia da supremacia branca, o filme de Griffith movimenta uma série de estereótipos raciais. Nos estereótipos, as marcas fenotípicas da diferença racial são inscritas em quadros cuja função narrativa se reduz diante de seu caráter simbólico. São quadros que condensam os significados contraditórios que o discurso racista atribui aos signos raciais: a subalternidade submissa e a ameaça subversiva, a ignorância alienada e a esperteza enganadora etc. A atribuição de significados contraditórios aos mesmos signos assinala a ambivalência característica dos estereótipos, como argumenta Homi K. Bhabha no capítulo “A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo”, do livro O local da cultura.
Alguns estereótipos raciais
Gostaria de chamar a atenção para outro recurso que O nascimento de uma nação explora no discurso racial que articula: a maquiagem racial, isto é, o uso da maquiagem para que atores brancos interpretem o papel de negros. No já citado Crítica da imagem eurocêntrica, Ella Shohat e Robert Stam também comentam esse procedimento, cuja genealogia ainda precisa ser escrita (até onde sei), como parte de uma história da maquiagem no teatro, no cinema e em outros espetáculos etc. Em última instância, trata-se de pensar sobre os significados do travestimento na história da representação e da imagem como parte da história do corpo. Na série de formas da máscara que atravessa o filme de Griffith, as peles brancas com máscaras negras constituem um ponto de convergência em que se entrelaçam as dimensões formais da técnica e da estética cinematográfica e os elementos de conteúdo da narrativa e da ideologia que a fundamenta. A meu ver, é como ventríloquos que os corpos brancos pintados de negros devem ser entendidos: por meio dos corpos travestidos, enuncia-se a superioridade branca. Em suas figuras, concentram-se os traços mais exacerbados dos estereótipos que fixam e aprisionam a aparência da pele negra no discurso da supremacia branca.
A certa altura do filme, a proteção da casa dos Cameron, em meio a embates nas ruas de Piedmont, fica a cargo de dois personagens travestidos de negros, como forma de evitar que sejam visados por escravos sublevados. Nesse momento, o procedimento da maquiagem racial passa para dentro da diegese, ocupando um lugar no universo narrativo. E o que se revela na inscrição da maquiagem racial dentro da diegese é o seu sentido como prática fora da narrativa, com efeitos no mundo comum. Na narrativa e fora dela, com efeito, trata-se de resguardar e proteger a propriedade branca por meio do travestimento, salvando a nação da desunião. Como máscara, o veneno – os signos associados à pele negra, em especial o fantasma da desunião nacional – pode se converter em remédio – a proteção da propriedade branca como garantia da continuidade e da prosperidade da identidade nacional.
As máscaras da história e da política: público e privado
Como seu título sugere, a consciência nacional constitui o horizonte ideológico de O nascimento de uma nação, que costuma ser considerado um “épico histórico”, dada a grandiosidade dos acontecimentos que procura narrar e sua pretensão de reconstituir a história da Guerra de Secessão e o período imediatamente posterior como parte da narrativa de origem nacional dos EUA. Mas qual é o estatuto do cinema de Griffith como representação da história? Qual é a forma de relação entre cinema e história que ele pressupõe e promove?
Longe do jogo e da festa, Griffith mascara a história e a política que a constitui com os delírios de um nacionalismo racista, de um humanismo burguês e de um individualismo moralista. Escrevendo a história da nação do ponto de vista dos vencedores, Griffith reproduz o racismo segregacionista característico dos EUA, em uma reconstrução da memória da nação que não pode ser vista como mera reconstituição, mas como suplemento, como prótese (estou pensando na ideia de “memória protética”, discutida por Robert Burgoyne, em A nação do filme).
A certa altura da narrativa, a Casa dos Representantes (House of Representatives) está sob o domínio de uma maioria negra, depois de eleições que o filme retrata como fraudulentas. Entre as medidas aprovadas, está o casamento inter-racial, que a música do filme investe de um caráter execrável, se não forçosamente inimaginável. É que, na lei de O nascimento de uma nação, o casamento inter-racial deve permanecer interditado à imaginação. Um letreiro enfatiza a suposta fidelidade da reconstituição, afirmando que se trata de “um facsímile histórico” baseado em fotografia de jornal. No entanto, em vez de fotografia, a base da encenação racista de Griffith são ilustrações desenhadas.
Tudo se passa como se, com as máscaras da montagem e movimentando as máscaras dos discursos racista e nacionalista, O nascimento de uma nação buscasse, em última instância, mascarar a história e despolitizar seus sentidos. A condenação da guerra e o elogio da bondade que o filme articula como melodrama correspondem aos anseios de um humanismo burguês que permanece cego em relação ao mundo em que vive. A política se esvazia diante do individualismo moralista que enaltece a Ku Klux Klan na figura de Ben Cameron. E não basta atribuir os problemas ideológicos do filme a uma época que se supõe ultrapassada, enquanto se preza pelo suposto “avanço” que o filme representaria no campo da estética cinematográfica. Fazendo isso, acabamos apenas evitando a questão crucial, que diz respeito ao caráter ideológico e político das formas que definem qualquer estética cinematográfica.
Embora evidentemente a estética da Hollywood clássica não seja necessariamente racista e não corresponda necessariamente ao que encontramos em O nascimento de uma nação, ela está carregada de valores. No filme de Griffith, é a figura da máscara, em todas as suas formas, que condensa os sentidos ideológicos políticos profundos da linguagem cinematográfica, para além do racismo e do nacionalismo com que o filme se compromete. A máscara pode ser lida como a palavra-chave que, se desdobrada em seus múltiplos sentidos, possibilita a abertura da cifra em que estética e ideologia, técnica e simbólico, se entrelaçam, não apenas em O nascimento de uma nação, mas na linguagem do cinema clássico. Ao mascaramento da descontinuidade que a montagem clássica procura fabricar corresponde a construção de uma visão da história como continuidade, que esvazia a política ao mascarar as linhas de força coletiva que a constituem, reduzindo-as à ação de personagens individuais, isto é, promovendo o privado para encobrir o público. Em vez de politizar o privado, o cinema clássico despolitiza o público, e esse é o legado de O nascimento de uma nação.
Post originalmente publicado em 30 de maio de 2011 e atualizado para essa versão.