1. Se a modernidade constitui uma época, a “pós-modernidade” é um nome para uma passagem que, como tal, de(s)limita a abertura para outra época, por vir. Como época, a modernidade costuma ser concebida de forma eurocêntrica e ocidentalista: tudo se passa como se a projeção mundial do capitalismo – em seus desdobramentos mercantis e industriais – fosse resultado de linhas de força euro-ocidentais, dispensando qualquer atenção às relações entre o Ocidente (noção que deve ser entendida em seus sentidos geopolíticos, e não apenas geográficos) e o resto do mundo. The West and the rest: eis a divisão que a concepção eurocêntrica da modernidade promove.
Um dos exemplos clássicos da concepção eurocêntrica, na área das ciências sociais, é o de Max Weber. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, a pergunta que impulsiona a investigação pressupõe que as condições associadas à emergência da modernidade e ao seu alcance mundial sejam exclusivas do Ocidente e tenham se construído de forma independente: “Que encadeamento de circunstâncias conduziu a que, precisamente no solo do Ocidente e só aqui, se produzissem fenômenos culturais que – pelo menos tal como nós costumamos representá-los para nós – estavam numa direção evolutiva de significação e validade universais?”.
Contra a concepção eurocêntrica e ocidentalista, é preciso construir uma concepção mundial de modernidade, reconhecendo seus diferentes momentos de articulação e a configuração geopolítica global que marca cada um deles. É o que propõe, por exemplo, Enrique Dussel, em Ética da libertação, argumentando que a modernidade europeia não existe de forma independente, não se constrói por si só e não permanece fechada em si mesma. Em vez disso, a Europa ocupa uma posição central num sistema-mundo cujo desenvolvimento histórico atravessa pelo menos dois momentos: (1) “a modernidade hispânica, humanista, renascentista”, que se inaugura em 1492 com a expansão colonial sobre as Américas, e (2) “a modernidade do centro da Europa”, que se desenrola a partir do século XVIII e culmina no colonialismo sobre a África e a Ásia. Nos dois momentos, o contraponto colonial deve ser reconhecido como o “exterior constitutivo” da modernidade.
Sobre esse pano de fundo, sugiro que a “pós-modernidade” pode ser concebida como um terceiro momento da modernidade – e é por isso que o termo é, no mínimo, ruim, por sugerir uma ultrapassagem de horizontes históricos que permanecem cruciais – o colonialismo, o capitalismo industrial etc. – embora convivam cada vez mais com linhas de força que não são completamente redutíveis à modernidade – o “pós-colonialismo”, a “sociedade pós-industrial” (outros termos muito ruins, por sinal) etc. Há várias versões da “pós-modernidade” – por exemplo, enquanto declínio das grandes narrativas (progressistas ou revolucionárias) que pretendem descrever a história como uma totalidade integrada e unificada, como quer o Jean-François Lyotard de A condição pós-moderna, ou enquanto transformação na experiência do espaço e do tempo, como quer o David Harvey de Condição pós-moderna. O que está em jogo em cada uma delas é menos a descrição de uma nova época, do que a tentativa de apontar os elementos da época moderna que, hoje, se encontram em crise, e cuja transformação pode estar relacionada à emergência de outra época, ainda sem nome, ainda por vir.
2. A arte e a produção estética em geral – incluindo o cinema contemporâneo em suas formas menos artísticas, mais espetaculares e mais industriais (a produção em série de mais do mesmo) – não refletem as épocas históricas e seus mo(vi)mentos como um espelho plano e límpido, mas sim como uma casa de espelhos, com suas multiplicações, distorções e transformações das imagens do mundo. Nesse sentido, à época moderna e à passagem pós-moderna, entendidas como momentos históricos, não correspondem plenamente os espelhos do modernismo e do pós-modernismo, entendidos como campos culturais, tal como sugere Renato Luiz Pucci Jr. no capítulo “Cinema pós-moderno” do livro História do cinema mundial. É por isso que não é apenas no chamado “cinema moderno” – do neo-realismo italiano à nouvelles vagues e cinemas novos ao redor do mundo – que encontramos os rastros da modernidade (desde que concebida da perspectiva mundial), mas em todo cinema.
Assim, os conceitos de pós-modernidade e pós-modernismo me parecem limitados, no máximo, a usos fundamentalmente estratégicos. É nesse sentido que as obras de Linda Hutcheon e Fredric Jameson, por exemplo, são interessantes para mim: colocam sob o signo do pós-moderno um feixe de questões que dizem respeito aos nossos tempos e às peculiaridades que os diferenciam da modernidade e das épocas anteriores, em contudo fazer do contemporâneo uma outra época já identificável. No entanto, o termo em si me desagrada bastante. Assim como “pós-colonial” ou “pós-industrial”, embora de forma diferente, “pós-moderno” sugere a ultrapassagem de um limiar e implica uma noção linear de história, beirando perigosamente um certo evolucionismo. Estrategicamente, pode ser interessante usar esses conceitos, mas é necessário escrever sob rasura, como talvez dissesse Jacques Derrida.
Se o interesse do conceito de cinema pós-moderno é estratégico, é porque a noção, equívoca, demanda um contexto de operações teórico-conceituais que lhe dê sentido e esse sentido está necessariamente ligado a uma interrogação sociopolítica (tal como esbocei acima). Os critérios que eu apontaria para pensarmos num cinema pós-moderno não são critérios especificamente estéticos (aliás, o pós-moderno em geral está relacionado, a meu ver, a uma radicalização intensa da interrogação moderna das especificidades nas artes). Em todo caso, o conceito de cinema pós-moderno me parece oposto ao conceito de cinema pós-industrial que o Bruno Cava sugeriu, além de não coincidir completamente com o conceito de pós-cinema que o Rodrigo Cássio propôs. Ao escrever sobre os critérios que proponho, tentarei explicar por quê.
Em primeiro lugar, o cinema pós-moderno é um cinema obcecado por suas heranças. Cineastas como Quentin Tarantino e Martin Scorsese são exemplares (embora eu não acredite que seja frutífero tratar suas obras somente a partir do conceito de cinema pós-moderno): assumem a história (do cinema, mas não só) como um parque temático, (re)visitando-a com a obsessão de uma criança para quem a história se converte em uma série de brinquedos. As estéticas cinematográficas se esvaziam de seus sentidos históricos e se convertem em uma variedade de opções estilísticas potencialmente intercambiáveis, disponíveis tanto para cineastas (sobretudo os que trabalham em contextos de saturação de referências) quanto para outros criadores do campo do audiovisual. É isso que sugere de fato a necessidade do conceito de pós-cinema (embora o termo possa ser questionado, sem dúvida): é preciso dar conta das formas pelas quais a chamada “convergência dos meios” rarefaz as especificidades do cinema, da televisão, do videogame etc.
Em segundo lugar, no cinema pós-moderno, a realidade perde seu lastro e o que interessa é o que está além dela. Estamos no reino daquilo que Jean Baudrillard, em Simulacros e simulação, chama de hiper-real: a imagem de cinema se converte num simulacro que precede e engloba a suposta “realidade”. O exemplo máximo para mim aqui é Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, que – além de transformar a história em um parque temático na medida em que a rescreve – recria ferozmente a guerra dos EUA no Vietnã a ponto de envolver a destruição de enormes trechos de floresta com napalm para as filmagens. Em outro sentido, a perda de lastro da realidade é o tema de inúmeros filmes (e não apenas sua condição de possibilidade ou um de seus efeitos), como é o caso da trilogia Matrix, de A origem e de Ilha do medo, entre outros.
Por fim, penso que o cinema pós-moderno é um cinema de citações, de referências cruzadas em uma lógica intensa e abundante de alusões. Eu poderia ser esquemático, com o risco de ser simplista, e dizer: o cinema clássico é ilusionista, o cinema moderno é anti-ilusionista e o cinema pós-moderno é alusionista. Talvez isso tenha algum sentido, embora eu não ache que a generalização seja inteiramente válida. Em todo caso, esse alusionismo me parece crucial para o cinema pós-moderno e está relacionado com os dois pontos anteriores: a história (do cinema) se converte num parque temático porque passa a ser vista como um manancial sem peso, que se pode designar por alusões; a realidade se torna rarefeita e o hiper-real emerge na medida em que o ilusionismo realista da representação dá lugar ao alusionismo hiper-realista da simulação. A meu ver, o que chamo de caráter alusionista do cinema pós-moderno resulta de sua condição industrial avançada (e não pós-industrial no sentido em que o Bruno sugeriu).
Se você está interessado no assunto, além das referências bibliográficas que mencionei no texto, sugiro a leitura de um pequeno calhamaço, O pós-modernismo, organizado por J. Guinsburg e Ana Mae Barbosa.
Uma resposta em “Sobre o cinema pós-moderno”
Muito legal seu texto, bem sucinto e pontual. Obrigado. tou estudando pra uma seminário na Facul de cinema sobre pós moderno e cinema de tarantino. Já li o texto do Pucci Jr e vou procurar sua indicação do Guinsburg.
Grato.