Em uma entrevista com Daniel Caetano publicada em 2008, Andrea Tonacci fala de seus contatos com diferentes povos indígenas no período entre suas experiências mais conhecidas de filmes de contato: as filmagens que fez junto aos Arara, que terminam “em 1982, 1983”, e a vinda à tona da história de Carapiru, em 1988, que culminará quase duas décadas depois no filme Serras da Desordem.
Quando Caetano pergunta a ele se permaneceu afastado “dos trabalhos com os índios” até conhecer a história de Carapiru, Tonacci responde com uma referência a outras experiências de contato: “Bem, eu fiz algumas coisas nesse meio-tempo, fui até os Kraô, depois fiz um trabalho com os Guaranis na fronteira seca com o Paraguai…”.
(Me pergunto: será que Tonacci filmou algo desses contatos com diferentes sociedades e realidades? Onde estão essas imagens? Será que algum cineasta indígena emergiu dos povos com que Tonacci se encontrou nessas ocasiões?)
Segundo sua rememoração sobre o período, Tonacci se encontra com a multiplicidade indígena nessas viagens no espaço e, ao mesmo tempo, em derivas imaginativas, que parecem ter permanecido sob a forma de projetos:
Mas nessa época eu escrevi outros projetos, imaginei outras histórias. Como um que se chamava O anel de fumaça, outro chamado Winds of courage… Que eram roteiros de histórias indígenas, histórias que eu ouvi, mas trabalhadas conforme o mito que a história conta, ou seja, a estrutura da história seguia um pouco a lógica do próprio mito.
O anel de fumaça: elaborando os sentidos dos títulos, talvez seja preciso imaginar os projetos a que se refere Tonacci como formas fugidias, cuja figura é a fumaça. Wind of courage: atravessando a fugacidade dessas formas que se anunciam e se desfazem na rapidez do fluxo da entrevista, talvez seja preciso também aí reconhecer uma força invisível de dispersão e disseminação, cuja figura é o vento.
Imaginar histórias é uma das condições do contato: imagina-se antes e depois, de um lado e de outro, fazendo proliferar as fantasias, recorrendo a imagens e narrativas anteriores, buscando inscrever a alteridade em alguma configuração do mundo e, ao mesmo tempo, reconhecer nela suas potências de desfiguração de mundos.
Basear a imaginação de histórias na escuta (“histórias que eu ouvi”), como faz Tonacci, talvez seja uma das maneiras mais simples de dar ao contato um sentido de abertura imaginativa, que não é estranho ao sonho como experiência de contato com a alteridade. Tonacci talvez sonhasse, afinal, ao escrever as histórias que ouviu e imaginou – e este talvez tenha sido outro modo de filmar o contato: como filmes a fazer, como projetos. Tonacci talvez sonhasse, enfim, como sonham os dois protagonistas de O anel de fumaça:
O Anel de Fumaça era dois sonhos, dois homens que tinham cada um o seu sonho, e aí as histórias dos sonhos se cruzam, um interferindo na realidade do outro. Precisam encontrar-se para tentar evitar a realidade dos sonhos… Eram umas tentativas por aí.
As tentativas de Tonacci podem não ter se convertido em filmes, mas nelas se pode adivinhar o que tenho tentado reconhecer como uma potência cosmopoética do cinema. É possível vislumbrar algo de uma abertura cosmopoética nos projetos cinematográficos não filmados de Tonacci, e pelo menos um deles confere a essa abertura cosmopoética um sentido cosmopolítico mundial, inscrevendo a narrativa em um espaçamento transnacional e transcontinental:
Ou então tinha uma tentativa de amarrar um sentido geral: quatro velhos de quatro grandes nações indígenas, cada um de um lugar do mundo, um daqui, outro da Índia, outro da América do Norte, outro da África, todos eles numa viagem em que o aparente acaso faz com que se encontrem, e na verdade só eles sabem o porquê deste encontro e que devem ficar juntos para transmitir um conhecimento que vai ser maior do que eles teriam se não estivessem juntos, isso era um outro roteiro…
(Me pergunto: será que ainda existem os roteiros e as anotações de Tonacci sobre esses projetos?)