Se, conforme um conhecido jogo etimológico, a fotografia pode ser entendida como escrita da luz, as imagens fotográficas evidenciam diferentes caligrafias e diferentes estilos. Assim como o desenho variável das letras que nossas mãos escrevem, o rastro da luz na imagem fotográfica passa por uma prótese – a câmera fotográfica como lápis (e como condição de possibilidade da caméra-stylo que Alexandre Astruc descobre no cinema) – e por um sujeito – o fotógrafo como função do aparelho, em pelo menos dois sentidos relacionados: (1) o fotógrafo como significante vazio do código do aparelho, espaço a ser preenchido variavelmente por quem manipula a máquina, e (2) o fotógrafo como funcionário do aparelho, alguém que ocupa uma posição prevista no programa que constitui a máquina.
Entre o sujeito e a prótese que suplementa seus sentidos, a fotografia constrói uma ponte, cuja arquitetura permanece incompreensível como é um labirinto para quem se perde em suas curvas: a existência do fotógrafo se desenrola no interior do labirinto e sua liberdade pertence aos limites do aparelho. Em outras palavras, não há liberdade para o fotógrafo a não ser nos limites do aparelho, quando as fronteiras da máquina e da própria fotografia se fazem incertas, quando a fotografia sonha com algo que escape à redundância, mesmo que não exista fotografia sem repetição, sem imitação, sem mimese. É preciso descobrir a liberdade na repetição e a diferença no cerne do mesmo, de novo: eis a tarefa que a fotografia evidencia como destino da política nos nossos tempos.
Com a fotografia, portanto, a luz se tornou uma questão ao mesmo tempo poética e política. No seu rastro, está em jogo a possibilidade de sonhar outros mundos. É sempre em direção a outros mundos que nos leva a fotografia, porque é de movimento que se faz a luz, mesmo quando está aprisionada na superfície do papel fotográfico ou no mosaico de pixels da tela. No movimento da luz em direção a outro lugar, reflete-se o movimento da nossa consciência – seja como fotógrafos, seja como espectadores – em direção ao possível que se adivinha mais além do existente.
Tudo se passa como se, na luz que se difunde ensolarada na fotografia “Barra” de Rodrigo Cássio, se insinuasse um movimento para fora da imagem – isto é, daquilo que na imagem se faz de índice, de rastro do mundo, de vestígio de um real qualquer e singular. Em contraponto com o voo dos pombos, que a imagem captura como uma pintura cubista desfeita, abrigando em sua superfície os diversos momentos de um movimento que nós só podemos imaginar, a luz convida nossos olhos a uma deriva sem fim – ao mesmo tempo: sem finalidade e sem término. No entanto, em vez de se consumirem no fogo solar que a luz inscreve na fotografia, nossos olhos acabam atraídos por algo que é pouco mais do que uma sombra, um vulto, uma mancha antropomórfica inominável. Olhamos, enfim, com ele, atrás do que vêem seus olhos, fora de campo. Olhamos, enfim, em busca daquilo que ilumina o holofote de sombra formado pelo triângulo composto pelas pombas, pela bicicleta e pelo homem sentado.
O tom de barro, que tinge o chão e se prolonga fragilmente no mar até as faixas de terra que compõem a linha do horizonte, se repete nas nuvens, enquadrando a luz e o movimento do olhar que, a partir dos rastros do sol, encaminha-se para a esquerda, impulsionado pela bicicleta, pelo voo e pelo vulto. Na escrita da luz, a fotografia “Barra”, de Rodrigo Cássio, se deixa embeber pelo barro que empoeira nossos olhos e os abre para o sonho, como uma navalha. Em sua poética e em sua política, a luz corta e lacera. O corte fotográfico, que começa como um golpe de captura do espaço e do tempo, como instantâneo, como inscrição de um real na malha fotográfica, assume a condição de abertura imagética, de ferida que interrompe a anestesia, de ex-crição, de criação do novo.