… c’est toujours la société que se paie elle-même de la fausse monnaie de son rêve.
… é sempre a sociedade que se paga, ela própria, com a moeda falsa de seu sonho.
Marcel Mauss e Henri Hubert
Uma das condições de possibilidade de Logorama consiste num jogo com o imaginário do capital, isto é, com as logomarcas e os personagens a elas relacionados. Apesar – e antes – de qualquer lei econômica que venha comandar a restrição de seus giros e o retorno capitalizante à propriedade, as logos são as peças de um jogo de citações, cujos lances são golpes de deslocamento que extraem as marcas de seu contexto próprio e as inscrevem na utopia de um mundo em negativo.
Como acontece num negativo fotográfico, o mundo de Logorama aparece como inversão dos valores do sensível, tornando necessário buscar os rastros da realidade, sob a forma de narrativa, em meio às logomarcas. Nessa busca, é a imitação de elementos do realismo clássico de Hollywood que possibilita a construção, muito tênue e frágil, de uma visão de mundo, isto é, de uma concepção unificada ideologicamente da realidade.
Após a apresentação de uma situação inicial em que as marcas e personagens compõem um cotidiano comum, acompanhamos uma perseguição policial em que o vilão Ronald McDonald aparece como o elemento da desordem, até que um terremoto faz tudo cair por terra. Se, por convenção de gênero, a perseguição policial tende a se encaminhar teleologicamente para uma resolução na qual a ordem original, que foi perturbada, se renova, em Logorama, o terremoto – elemento dramático que movimenta outras convenções de gênero e abre uma fratura no cerne da narrativa – desencadeia uma série de acontecimentos que deslocam a teleologia da perseguição policial para a fuga e o enfrentamento da catástrofe. A esse deslocamento da teleologia que orienta a narrativa, corresponde o deslocamento da focalização nas personagens dos policiais e do vilão para a focalização no casal de personagens que acompanharemos, a partir daí, até o final do filme.
No investimento simbólico a que a publicidade e o marketing destinam as marcas corporativas, está em jogo a programação do imaginário do capital, como conteúdo e forma – figurações e configurações – do espetáculo do mundo. Quando Logorama se apropria das figurações (as logomarcas e suas personagens) e das configurações (os gêneros narrativos e as formas estéticas a eles associadas) do espetáculo, é apenas do ponto de vista da lei que rege a economia do capital – e de seu sonho da propriedade como condição originária do comum – que se pode falar em expropriação. Antes, o que se revela em Logorama, no campo de batalha da imaginação e do imaginário, é a condição originária de expropriedade – de exterioridade à propriedade capitalista – do comum, isto é, de tudo aquilo que o capitalismo pretende converter hoje em (sua) propriedade, em (seu) próprio.
Em vez de condição original, o próprio deve ser concebido como efeito de captura do comum. As marcas são investidas de pensamentos, sentimentos e desejos, assumindo a condição de fetiches que representam – tanto estética quando politicamente – a utopia mais difusa do capital: o mundo como não-lugar, sem singularidades. Como (con)figuração do não-lugar, a utopia de Logorama representa a condição generalizada de ocupação das paisagens culturais contemporâneas pelas marcas corporativas, como se o mundo fosse uma casa tomada pelo imaginário do capital e, dessa forma, se convertesse num imenso shopping center ou, talvez, numa ficção hollywoodiana em que, no final, nossos desejos poderão sempre se satisfazer.
Para representar a utopia do mundo como shopping center, Logorama se apropria das logomarcas e personagens corporativos e revela, assim, sua condição contemporânea de dispositivos de captura do comum. Na restrição que pesa sobre seu uso, está em jogo a manutenção da captura do comum pelos dispositivos de representação, com base no registro das marcas do capital sob a forma de um imaginário. O imaginário é sempre o que contém a imaginação em seus conteúdos e formas. Como a captura do comum precisa ser reiterada incessantemente, pois consiste num ataque a sua condição originária de expropriedade, o campo de batalha entre imaginário e imaginação – entre contenção e captura, de um lado, e disseminação e deriva, de outro – se abre como espaço de jogo.
A tarefa política que devemos assumir consiste em devolver o imaginário corporificado em torno das marcas do capital às potências da imaginação, como formas do comum em sua expropriedade originária. Trata-se de transformar o imaginário saturado do capital e sua utopia por meio das potências da imaginação, confrontando sua captura pelos dispositivos que a programam.
Em Logorama, é como fantasmagoria que se insinua a emergência do comum fora de sua captura pelo imaginário do capital. O casal de personagens que foge da catástrofe insinua a (re)fundação do mundo, como estranhos Adão e Eva, num plano final que, afastando-se deles e da pequena porção de terra em que se salvaram do fim, mostra o globo terrestre e todo o universo como uma função do programa inscrito no imaginário do capital.
Apenas a revelação do significado distópico da utopia programada do imaginário do capital pode tornar possível o início da reinvenção de nossos passos. Enquanto isso não se desencadear, a (re)fundação do mundo como emergência do comum em sua condição de expropriedade não passará de fantasia, de fantasma, de sonho sancionado pelo próprio capital, a assombração programada que transforma Logorama num breve e quase – mas toda esperança reside desesperadamente nesse quase – inócuo passeio de Trem Fantasma, através do gigantesco Parque de Diversões do Capital.