Os clichês do mundo
O espelho redutor
Se o episódio que deu início à mais recente série de televisão associada ao universo de super-heróis da Marvel me afetou pela nitidez com que me fez perceber a mistura de prazer e tédio que está associada à experiência do blockbuster, o segundo episódio condensou uma série de clichês característicos das formas hollywoodianas de representar outras partes do mundo, especificamente do chamado “terceiro mundo”. É como se não houvesse saída: tudo que pode ser encontrado em outras partes do mundo não passaria de um reflexo em que se forma somente a imagem de quem olha, nada mais. Nesse sentido, na mistura do segundo episódio de Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D., o tédio predomina sobre o prazer.
Encontrar o reflexo de si em lugares distantes e em corpos diferentes não é uma experiência incomum. Talvez seja uma das formas mais recorrentes de construção de relações com a alteridade: sobre a diferença cultural, projeta-se um espelho imaginário, que possibilita o reconhecimento de características em comum, ao mesmo tempo que revela, em suas distorções e inversões, em suas disjunções, o que permanece irredutível e inassimilável, no outro, ao sujeito do olhar. O problema que aparece no segundo episódio de Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D. é que a relação com a diferença é reduzida, em um só golpe, a uma relação com um inimigo que não passa de um reflexo, sem disjunção. Não há nada além disso no espelho que o episódio projeta: todos os traços de alteridade desaparecem, como uma névoa que se dissipa para revelar paisagens muito familiares, sem qualquer possibilidade de estranhamento. Nesse espelho redutor, a alteridade torna-se um conjunto de estereótipos e a diferença passa a ser, necessariamente, fonte de conflitos.
Estereótipos
Skye, a hacker e ativista da Maré Crescente (Rising Tide) que conseguiu invadir os sistemas da S.H.I.E.L.D. e foi convidada a se juntar ao grupo, participa de sua primeira missão, a bordo do “Ônibus”, o avião que serve de quartel e de base de operações. Em meio a sua chegada, alguns elementos intertextuais que remontam ao filme Os vingadores são introduzidos, de modo a começar a explicar o que ocorreu com o agente Phillip Coulson, líder da equipe, depois que foi atingido pelo cetro de Asgard (o lar de Thor). Coulson se afastou por um tempo e ganhou o avião, que remodelou por completo, além de ter passado um tempo no Taiti: “É um lugar mágico”, diz ele a Skye, que opera, recorrentemente, como foco da narração.
A viagem da equipe S.H.I.E.L.D. ao Peru decorre da obtenção de informação sobre um “objeto de origem desconhecida”, designado como “0-8-4” (título do episódio). A última aparição de um “0-8-4” no universo da narrativa é a do martelo de Thor. A menção intertextual, que não nomeia Thor, serve como um gancho para os planos seguintes, que introduzem a paisagem peruana por meio da alternância entre campo e contra-campo. Skye é o sujeito do olhar, o que confirma seu papel de foco da narração: é por meio de sua perspectiva que somos apresentados à S.H.I.E.L.D., aos acontecimentos do passado que definem as personagens e aos eventos presentes e iminentes que constituem o material da narrativa.
As imagens que representam o Peru articulam as ideias de distância e de natureza. Efetivamente, além da distância geográfica, entre o contexto urbano tecnológico em que as personagens da série transitam no cotidiano e o contexto de floresta a que se dirigem nessa missão, os planos seguintes definem, igualmente, a ideia de distância temporal: o local do objeto “0-8-4” é um sítio arqueológico em Llactapata.
Após a chegada do grupo, que ocorre em carros grandes e barulhentos, como se fosse necessário enfatizar sua estrangeiridade, o casal de cientistas a que as demais personagens costumam se referir como Fitz-Simmons conversam sobre o que esperam encontrar por ali:
– Adoraria ver um macaco-prego na natureza. – diz Leo Fitz – Talvez até um macaco de cauda amarela. Você sabe, o Peru tem 32 espécies diferentes de macaco…
– Sim, e quase 200 espécies de cobras. – responde Jemma Simmons, que continua descrevendo o veneno de uma delas e suas propriedades, para desconforto do colega. Ao notar que Fitz está incomodado, Jemma argumenta:
– Eu estaria muito mais preocupada com terremotos e… – ela bate no pescoço de Fitz para mater um mosquito – E não há vacina para dengue.
O diálogo é periférico ao enredo: as duas personagens caminham enquanto falam, até chegarem ao local do “0-8-4”. Aparentemente, sua conversa não poderia ser mais trivial. No entanto, ela opera como um recurso de construção do imaginário sobre o Peru, sobre a floresta e sobre a natureza como elementos característicos do “Terceiro Mundo” e sobre os perigos e as ameaças que habitam regiões distantes dos centros supostos da domesticidade ocidental.
O final do diálogo de Fitz e Simmons ocorre quando chegam ao templo “inca”, segundo a série, em que está o objeto desconhecido. A música se eleva e confere maior peso dramático à sequência formada pelo plano do campo em que os rostos maravilhados das personagens se iluminam e pelo plano do contra-campo em que a visão do templo se revela gradualmente para o espectador.
Se o diálogo entre os cientistas identifica os perigos do Peru na esfera da natureza, o diálogo entre Skye e Coulson que dá continuidade à narração inscreve as ameaças que o país latino-americano abriga na esfera da política. Ela diz: “Devemos avisar as pessoas que vivem aqui se o 0-8-4 for perigoso. Eles já estão lidando com rebeldes anti-mineração e com a milícia do Sendero Luminoso.”
Tanto as legendas que foram ao ar na transmissão do dia 03 de outubro, no Canal Sony, quanto as legendas publicadas no site Legendas.tv, muito utilizado por quem costuma assistir as séries depois que são disponibilizadas na internet, apresentam dois problemas graves nesse trecho: não reproduzem a identificação da motivação dos “rebeldes” citados (anti-mining rebels, diz Skye: trata-se de ações contra a mineração nas terras da região, um dos elementos mais disputados na região da Amazônia peruana e também no Brasil, inclusive fora da Amazônia) e nem a classificação do Sendero Luminoso como “milícia” (milice, diz a hacktivista). Nos dois tópicos, as legendas reproduzem uma tendência de simplificação – isto é, de formulação de clichês – que se encontra, desde o início, nas falas originais, sobretudo em sua função narrativa.
Ao citar os anti-mining rebels e the Shining Path milice, Skye participa do jogo duplo de Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D., assim como de outras grandes produções que citam fenômenos de realidades sociais contemporâneas. Por um lado, as informações oferecidas servem para conferir à narrativa maior aparência de realismo, com base na referência suposta do mundo (que não passa de moeda falsa). Por outro lado, reproduzem o imaginário dominante, que participa da produção das situações a que as informações, supostamente críticas, estão se referindo, e essa reprodução se dá por meio do reforço de ideias simplistas sobre realidades desconhecidas por quem produz a série e sobre temas como o “terrorismo” (termo que serve para homogeneizar uma série de formas distintas de ação em meio a conflitos de diferentes tipos, nos mais diversos contextos sócio-históricos).
A função narrativa da fala de Skye pode ser identificada, a contrapelo, com o que Coulson descreve ao responder a ela que o que descobrirem ali não deve ser divulgado publicamente: “Se isso sair, vou precisar que você crie algum tipo de desvio. Algo para distrair o público.” A série procura superar o conflito entre a demanda de publicidade, que é (mal-)representada por Skye, e o que secretismo governamental, representado por Coulson, por meio de sua transformação em elemento dramático, destinado a manter a narrativa em movimento, e de sua encenação sob a modalidade do cômico. Skye responde: “Então, tudo contra o que luto. [So, everything that I’m against…]”. Coulson confirma, na aposta cômica que a série busca enfatizar em sua montagem: “Sim. [Yep.]”.
Artefatos
O “objeto de origem desconhecida” entra em cena como um enigma para o professor que cuida da missão arqueológica no templo, mas é desvendado em segundos pelos cientistas da S.H.I.E.L.D.: Simmons afirma que está há mais de 1500 anos e, portanto, antecede o templo em que foi encontrado, que é de 500 anos. Isso a leva a dizer, animada: “Talvez seja alienígena.” Fitz observa que a forma do objeto sugere procedência alemã. Essa conjunção remonta às origens e à trajetória da tecnologia envolvida no objeto, que foram objeto das histórias em quadrinhos e dos filmes: é um objeto de design alemão, cuja energia é o tesseract, de origem asgardiana. Mais adiante, Fitz identifica as origens do “0-8-4”: “HIDRA. Segunda Guerra Mundial. Capitão América.”
A chegada da polícia militar peruana interrompe a equipe. A comandante Camilla Reyes é velha conhecida de Coulson e argumenta que devem decidir como proceder em relação ao objeto. Ele responde: “Um 0-8-4 predomina sobre qualquer reivindicação nacional.” O pretenso alcance global das atividades da S.H.I.E.L.D. autoriza Coulson a desconsiderar a solicitação de Reyes. Porém, um ataque conduz à fuga da S.H.I.E.L.D. e de parte da polícia liderada por Reyes, a bordo do “Ônibus”. Na aeronave, Reyes revela suas intenções: o ataque foi uma encenação para permitir que ela pudesse ter acesso às instalações da S.H.I.E.L.D.
Depois de ter subjugado a equipe, Reyes revela a Coulson que o “0-8-4” é uma arma encomendada por seu país e fabricada por nazistas que fugiram para “esse lado do mundo”, depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Ela diz: “A arma foi perdida durante um conflito na selva. Até hoje. Com ela, acabaremos com a insurgência rebelde e, finalmente, estabilizaremos meu país.” Coulson contradiz: “Você quer dizer: dominar seu país.” O “objeto de origem desconhecida” torna-se, assim, no contexto da narrativa, uma arma governamental que pertence a “inimigos”: a diferença desaparece, resta apenas o conflito como forma de relação com o outro. No restante do diálogo, Reyes reivindica a soberania nacional, contra Coulson, que afirma que “fronteiras estão desaparecendo”. Novamente, o embate entre o nacional, representado pela alteridade peruana, que se converte em inimigo, e o global, representado pela S.H.I.E.L.D., embora se trate de um engano: a S.H.I.E.L.D. pertence, afinal, ao governo dos Estados Unidos. O suposto global não é nada além da projeção de hegemonia de um contexto nacional particular.
O desenlace do episódio é previsível: a equipe da S.H.I.E.L.D. consegue se libertar e Reyes é presa. O avião, no entanto, acaba destruído. Enquanto assiste, com o grupo, ao lançamento do foguete que levará a arma para a destruição, bem longe da Terra, Skye recebe uma mensagem encriptada em seu celular, de um dos membros da Maré Crescente, que pergunta sobre sua situação. Ela responde: “Estou dentro.” O desfecho funciona como gancho para os próximos episódios, em que a situação de Skye no grupo se desenvolverá. Através dessa situação dramática, encena-se, em Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D., o embate entre publicidade e segredo de Estado, assim como entre liberdade de informação e governo.
É enganoso esperar pouco (pouca complexidade, pouco potencial dramático, pouca crítica…) de uma série como essa. O fato de pertencer à indústria do entretenimento mais lucrativa e, portanto, às engrenagens mais dinâmicas do espetáculo, não implica que Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D. seja um produto direto e não contraditório de seu contexto. Seja como for, sua trama entrelaça uma série de fios que participam da tecelagem do presente. Nesse sentido, como sempre ocorre com as imagens do espetáculo, suas imagens repletas de clichês do mundo em que vivemos nos habitam mesmo se não o desejamos. É necessário interrogar suas superfícies para, talvez, revelar o mundo por trás dos clichês que procuram contê-lo.