Las Meninas é uma pintura cuja complexidade não deixa de me impressionar desde que a conheci (ou a reencontrei), quando li o capítulo inicial do livro As palavras e as coisas (1966), de Michel Foucault, logo depois de ler seu fascinante prefácio. Ambos são textos densos como o quadro, mas o que mais me impressionou foi como, afinal, a pintura de Velázquez parecia permanecer, insistentemente, irredutível aos sentidos que Foucault procura atribuir a ela.
A irredutibilidade da obra de Velázquez ao texto de Foucault não é a que se supõe existir, frequentemente, entre imagem e palavra, isto é, da imagem em palavras, como exprime o conhecido e equivocado ditado “Uma imagem vale mais do que mil palavras.” Seria preciso dizer, contra o senso comum, que a conversibilidade entre palavra e imagem somente se torna possível, na economia dos sentidos, com o recurso à moeda falsa da referência suposta do mundo.
É preciso supor o mundo para converter palavra em imagem e imagem em palavra, mas não há nada que sustente a suposição do mundo, a não ser as palavras e as imagens que o tornam concebível. Dessa forma, toda relação entre palavra e imagem acontece, a cada vez, de forma singular, sem que seja possível estabelecer uma hierarquia, uma regra geral ou uma conversibilidade estável.
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Foucault não ignora a dificuldade do estabelecimento de relações entre palavras e imagens. No capítulo inicial de seu livro, ele começa por não atribuir nomes próprios às personagens do quadro, como se costuma fazer quase imediatamente, ainda mais diante de pinturas com figuras históricas.
Em vez de falar de Diego Velázquez e de seu autorretrato, da infanta Margarida e de sua corte, do rei Filipe IV e de sua esposa, Foucault descreve a cena do quadro com substantivos comuns. E mesmo mais adiante no texto, quando acaba por nomear as figuras representadas, procura não se manter preso a essa designação e à moeda falsa que ela pressupõe: a referência do mundo, das figuras históricas a que a pintura está associada, o pintor, a infanta, o soberano.
Foucault é enfático: a relação entre linguagem e pintura é infinita. Ambas são irredutíveis entre si. Além disso, ele argumenta que os nomes próprios que permitem identificar a particularidade histórica inscrita na pintura são meros artifícios.
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Para entender como Foucault interpreta ou analisa Las Meninas no capítulo 1 de As palavras e as coisas, assunto sobre o qual falei, há algum tempo, numa das aulas do doutorado, elaborei um certo itinerário no Prezi, que você pode conferir abaixo.
O que Foucault analisa, desde o início, na obra de Velázquez, é a relação de olhares que se estabelece no quadro e a relação entre visível e invisível que os olhares instauram. Em primeiro lugar, ele nota a inversão de papeis entre espectador e modelo, entre sujeito e objeto, que a cena representada no quadro instaura: o espectador se vê sendo visto, na posição ocupada pelo modelo suposto pela cena, o modelo que o pintor representado no quadro observa.
No prefácio de As palavras e as coisas, o problema central que se anuncia como objeto de investigação do livro é o espaço ou lugar comum que constitui a condição de possibilidade de qualquer classificação e, portanto, de todo saber. No prefácio, o conto “O idioma analítico de John Wilkins”, que pertence ao livro Outras inquisições, de Jorge Luís Borges (publicado em 1952), oferece a Foucault o exemplo crítico que impulsiona sua pesquisa.
No conto de Borges, o narrador cita “certa enciclopédia chinesa”: “Em suas remotas páginas consta que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar o vaso, (n) que de longe parecem moscas.” A classificação da enciclopédia chinesa se assemelharia às “ambiguidades, redundâncias e deficiências” do “idioma analítico” de John Wilkins, inventado por volta de 1664, cuja pretensão é a de dar conta de todos os pensamentos humanos, assim como o sistema decimal de numeração dá conta de todas as quantidades até o infinito. O idioma seria, assim como o sistema decimal, o espaço ou lugar comum capaz de abrigar toda a diversidade do mundo.
Quando analisa Las Meninas, Foucault procura reconhecer, no quadro, um conjunto de metáforas visuais da proposição conceitual básica de que toda classificação exige e pressupõe um espaço ou lugar comum, cujas condições de possibilidade não são dadas ou naturais e, portanto, cuja conformação decorre de transformações históricas. Especificamente, Foucault está preocupado com as transformações da ordem dos saberes que, no Ocidente, possibilitaram a existência das ciências humanas e do sistema de classificação que a ela está associado.
As metáforas visuais do quadro de Velázquez correspondem a conceitos cuja emergência e cujas transformações serão analisados por Foucault no restante de As palavras e as coisas. As principais metáforas são três: o conhecimento como luz, a representação como espelho e o conhecimento como representação. Foucault descreve a importância da janela, para ligar o quadro ao que está fora dele, como fonte aparente da “luz inteira e mista que serve de lugar comum à representação” e “que torna visível toda representação” (p. 7). As relações de olhar que essa luz torna possíveis compõem o quadro metafórico que Foucault inscreve em Las Meninas.
A figura do espelho é fundamental tanto para o quadro pictórico de Velázquez quanto para o quadro metafórico de Foucault. A análise de Foucault irá, efetivamente, concentrar grande parte de sua atenção no espelho que se pode identificar no fundo da cena representada. Para ele, “esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que aí poderia captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de todo olhar” (p. 10), isto é, ao modelo do pintor representado e ao espectador diante da pintura, que constituem duas formas correlatas de invisibilidade, opostas ao espelho como espaço de visibilidade (conforme a tradição da pintura flamenga que Foucault identifica): uma relativa ao campo interno da representação e outra ao que está fora da representação.
A janela e o espelho constituem, conforme essa argumentação de Foucault, lugares comuns ao quadro e ao que lhe é exterior. Entre elas, desenrola-se a dinâmica da relações de olhares que constitui o quadro. É interessante desenhar, sobre a reprodução do quadro de Velázquez, as linhas que, para Foucault, definem “o ciclo da representação”. No Prezi acima, há duas imagens que procuram fazer exatamente isso:
O X e as curvas delimitam as divisões do espaço de composição, no qual o espelho ocupa posição central. O cruzamento das linhas do X se situa sobre os olhos da infanta Margarida. A curva amarela abriga o espelho e liga o olhar do pintor ao olhar do homem na porta, passando pelos olhares da infanta e da aia que está a sua direita (à esquerda do quadro). A curva azul, finalmente, corresponde ao “ciclo da representação”, pois se inicia em seus “instrumentos materiais” (a tela, o pintor e seus equipamentos), atravessa a “representação acabada” (refletida no espelho) e dirige-se à luz da janela, onde a representação se dilui.
Tudo se torna mais interessante quando a atenção de Foucault recai sobre a perspectiva geométrica que orienta a representação. Embora ele não esteja preocupado com toda a complexidade do aparelho perspectivo, em sua tecnicidade, como marcador de época, Foucault reconhece a importância do ponto de fuga duplicado que caracteriza a geometria do quadro. O centro da representação é, dessa forma, deslocado do ponto geométrico para o ponto simbólico. Foucault escreve:
Esse centro é simbolicamente soberano na sua particularidade histórica, já que é ocupado pelo rei Filipe IV e sua esposa. Mas, sobretudo, ele o é pela tríplice função que ocupa em relação ao quadro. Nele vêm superpor-se exatamente o olhar do modelo no momento em que é pintado, o do espectador que contempla a cena e o do pintor no momento em que compõe seu quadro (não o que é representado, mas o que está diante de nós e do qual falamos). Essas três funções ‘olhantes’ confundem-se em um ponto exterior ao quadro: isto é, ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, porquanto é a partir dele que se torna possível a representação; nessa realidade mesma, ele não pode deixar de ser invisível. (p. 18-19)
Por meio das metáforas visuais que Foucault procura mapear, o que se encena em Las Meninas é, portanto, “a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre.” (p. 20) O fundamento profundo da representação clássica é explicitado pela relação de olhares instaurada pelo quadro de Velázquez: o “desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança.” (p. 20-21)
Velázquez encontra-se numa posição liminar, entre o que Foucault chama de época clássica (grosso modo, séculos XVI e XVII; a idade da representação) e a época moderna (grosso modo, séculos XVIII e XIX). Da época clássica, ele demonstra a consciência e o distanciamento que possibilitam identificar seu fundamento, a representação, e o que funda a representação, isto é, o ocultamento do sujeito. Da época moderna, ele insinua os traços que definem a crise da representação, sua principal característica.
2 respostas em “Las Meninas segundo Foucault”
[…] notícia, nas fotografias e na articulação instável que se estabelece entre elas, a cada vez, a referência suposta do mundo se revela incerta, mas sua moeda falsa permanece eficaz na economia dos sentidos, na qual intervém […]
[…] da situação histórica suposta como referência do mundo (que, eu diria, não passa de moeda falsa) à inscrição imagética que resta como um dos traços visíveis, como um dos vestígios que […]