Depois de assistir o primeiro episódio de Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D., tentei identificar, no texto abaixo, o que me incomodou e, ao mesmo tempo, o que me manteve interessado em continuar assistindo a nova série.
Nota sobre a banalidade do blockbuster
Uma das mais importantes características da série que acaba de estrear no canal de televisão por assinatura Sony, no dia 26 de setembro, é sua relação multifacetada com um conjunto de grandes produções cinematográficas dos últimos anos, as quais constituem, por sua vez, adaptações de histórias em quadrinhos bastante conhecidas. As franquias de super-heróis como Homem de Ferro, Hulk, Capitão América e Thor, que participam do grupo dos Vingadores, tornaram-se recorrentes na paisagem cinematográfica faz tempo, e não são nenhuma novidade no contexto mais amplo da produção industrial de narrativas. Mas há diversos elementos novos nas modalidades multimidiáticas atuais das franquias de super-heróis, em comparação com suas manifestações anteriores, ao menos em seu alcance expandido, nas formas de sua visibilidade e na intensidade de sua difusão, que assume, atualmente, a forma da diluição.
Os prazeres da repetição
As histórias em quadrinhos são um dos exemplos mais notáveis de narrativas seriadas. A princípio, sua abertura distingue os quadrinhos dos romances em folhetim, típicos do século XIX: em vez de esperar um encerramento, como no caso dos romances, os leitores apostam, sem dúvida, na renovação constante dos quadrinhos. Com efeito, um dos princípios de toda narrativa seriada é a oscilação entre renovação e repetição. Essa oscilação assume diversas formas, que estão associadas ao período de tempo que separa os episódios (semanas, no caso de séries de televisão; meses, no caso de certos quadrinhos e de temporadas de séries; anos, no caso de livros ou de filmes, como as sagas, em geral; etc.), assim como aos tipos de relações que predominam entre eles (cronológicas, temáticas etc.). Do equilíbrio instável entre renovação e repetição depende o sucesso de uma narrativa seriada. É preciso sustentar a atenção dos leitores e/ou dos espectadores, para que desejem conhecer como a narrativa continua.
Quando Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D. menciona os acontecimentos narrados nos filmes de super-heróis, além de situar sua narrativa no contexto do chamado Universo Marvel, a série introduz elementos que os espectadores reconhecem, num novo contexto. A repetição que se manifesta nas menções a eventos, a personagens e a lugares é renovada pelo contexto novo em que a série as introduz. Dessa forma, um dos maiores prazeres das narrativas seriadas depende do conhecimento prévio de alguns dos elementos. Se não há esse conhecimento, o que seria uma repetição prazerosamente reconhecida pelo espectador tende a tornar-se apenas uma novidade vazia, que ele se esforça por inserir na narrativa que acompanha.
Construir uma narrativa seriada que, ao mesmo tempo, suscite os prazeres da repetição para espectadores com conhecimento prévio de outras narrativas citadas e proporcione outros prazeres para espectadores desprovidos de parte ou da totalidade do conhecimento prévio exigido para o reconhecimento da repetição. O alcance expandido das modalidades multimidiáticas atuais das franquias de super-heróis decorre da ampla difusão de narrativas, em diversos meios e contextos, com o mesmo grupo de personagens, os mesmos universos imaginários etc. A dependência em relação ao conhecimento prévio das histórias em quadrinhos é reduzida. O Universo Marvel (assim como inúmeros outros “universos” narrativos) torna-se disponível sob as mais diversas formas, além dos quadrinhos: brinquedos, jogos eletrônicos, filmes, séries de televisão etc. As diversas narrativas citam-se umas às outras, criando uma rede de referências intertextuais e reduzindo ou até abolindo a ordem hierárquica que a cronologia de seu surgimento pareceria impor.
A visibilidade banal
A tendência que Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D. representa no contexto do audiovisual contemporâneo é importante para a compreensão de um termo frequente – e frequentemente mal compreendido – nos comentários usuais sobre as grandes produções cinematográficas: blockbuster. O termo blockbuster pode ser traduzido como “arrasa quarteirão” e refere-se ao impacto massivo que a indústria do entretenimento pretende conferir a determinados produtos. Para isso, as formas de aparição desses produtos são multiplicadas: filmes, livros, quadrinhos, brinquedos, jogos eletrônicos etc. Uma das características fundamentais de qualquer blockbuster é o fato de que seu conteúdo é diluído sob várias formas, para ser melhor difundido.
Se há prazeres na repetição de elementos de outras narrativas, reservados para quem souber identificá-los, a diluição do conteúdo sob várias formas confere ao blockbuster – e às narrativas em geral fantasiosas que contém – a banalidade das imagens mais cotidianas. A pretensa grandiosidade das imagens do blockbuster se rarefaz, devido à diluição de seus conteúdos sob tantas formas quanto possível. Se há grandiosidade, é na proliferação de imagens, em que o conteúdo diluído pode assumir uma forma cada vez mais banal, apenas para se tornar ainda mais visível.
A visibilidade banal de suas imagens, que se difundem na medida em que diluem o que representam e o que significam, dá a Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D. as possibilidades de prazer que a série tenta explorar e, ao mesmo tempo, o insuperável tédio que a afeta, apesar de suas evidentes pretensões. Efetivamente, é apenas sobre o pano de fundo do tédio que atravessa suas imagens que pode se destacar alguma faísca de prazer, a qual talvez não passe de um fantasma do prazer suposto, do prazer ideal que se costuma projetar no passado ou no futuro, mas cuja realidade presente não cessa de nos escapar.
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Duas indicações de leitura
- No livro Os limites da interpretação, Umberto Eco inclui um ensaio sobre narrativas seriadas. Além de propor alguns conceitos que permitem construir um quadro provisório de classificação desse tipo de produção, Eco discute diversos exemplos concretos e diferencia as formas de relação que diferentes tipos de espectador podem estabelecer com as mensagens dessas narrativas.
- Em História do cinema mundial, há um capítulo escrito pelo organizador do livro, Fernando Mascarello, intitulado “Cinema hollywoodiano contemporâneo”. As discussões sobre o termo blockbuster e sobre a importância da intertextualidade para o cinema atual são alguns dos assuntos abordados pelo autor, que está interessado em revisar parte da literatura especializada sobre esses e outros assuntos relacionados.
4 respostas em “Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D. S01E01”
Curioso. O cara fez uma espécie de HDR, juntando dois negaativos com diferentes valores de exposição para aumenta latitude?
novamente, agora digitando com as duas mãos. Essa técnica do duplo negativo não conhecia. Parece-me com a técnica do HDR no digital, onde você junta mais de uma imagem, com diferentes exposições (geralmente tres fotos, uma com exposição correta, outra com 1 f/stop acima, outra com 1f/stop abaixo) para aumentar a latitude. Não sei se é o mesmo raciocínio, mas não deixa de ser curioso.
Muito bacana esse ensaio, Marcelo. Os cineastas publicitários e retóricos (ironicamente chamados de realizadores) teriam algo a realizar (de fato), se levassem adiante leituras e reflexões que envolvessem as pertinentes ideias que você expõe no texto. Infelizmente, como se sói dizer, isso deve ser coisa para os filósofos. Sobre a máquina-caneta (do seu comentário) penso ser a ideia precursora da camera-stylo (conceito de Alexandre Astruc), que se tornou um dos traços da nouvelle vague. Sem dúvida, a leitura de Flusser possibilita um bom aprofundamento dessas questões, sobretudo no que se refere à relação imagem e texto, e de como a caixa-preta pode ser vista como a grande metáfora do universo contemporâneo das imagens técnicas. Abraço.
[…] pela nitidez com que me fez perceber a mistura de prazer e tédio que está associada à experiência do blockbuster, o segundo episódio condensou uma série de clichês característicos das formas […]