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Carcará: o momento decisivo

Há uma multiplicidade de tempos em jogo na fotografia e, de certa forma, a imagem fotográfica parece se constituir como um abrigo dos tempos.


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Os tempos da fotografia

Há uma multiplicidade de tempos em jogo na fotografia e, de certa forma, a imagem fotográfica parece se constituir como um abrigo dos tempos. A duplicidade da preposição “de”, que liga a palavra “abrigo” a seu complemento, “os tempos”, não deve passar despercebida: a fotografia é ao mesmo tempo, de um lado, o que abriga as coisas contra os tempos – que as transformam, as destroem, as recriam, num fluxo interminável, mesmo que finito – e, de outro lado, o que abriga o tempo de cada coisa na sua singularidade, acolhendo essa singularidade temporal na superfície da imagem.

Quando pensamos – e praticamos – a fotografia como arte do instantâneo, está em jogo o controle sobre o tempo de exposição e a possibilidade de sua redução a frações muito pequenas. No decorrer de uma série de experimentos iniciais no século XIX, o tempo de exposição necessário para a fixação da imagem – que então se formava físico-quimicamente – foi gradualmente reduzido de 8 horas ou mais até chegar a milésimos de segundo, num patamar que se estabeleceu como uma regra para todos os aparelhos fotográficos e permitiu identificar o ato de fotografar com apertar um botão.

Uma das fotografias que evidencia os dilemas paradoxais envolvidos no processo de redução do tempo de exposição necessário para a fixação da imagem é “A grande onda”, de Gustave LeGray. Ali, está em jogo a conciliação da lógica do instantâneo – que recorta fatias homogêneas de tempo – e a lógica da montagem – que inscreve fatias diferentes na sincronia superficial da imagem.

Se nossa experiência do tempo se passa como um fluxo – cuja inconstância a metáfora do rio procura captar na repetida fórmula de Heráclito segundo a qual nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio – o instantâneo fotográfico aparece como congelamento. No abrigo do congelamento fotográfico do tempo, vão buscar refúgio as coisas, que ali se liberam das contingências ao se fazerem pura aparência, e os tempos, que ali podem conviver como as águas de uma pluralidade de rios que deságuam no mar. Como abrigo dos tempos, a fotografia marca a existência de algo de irreprodutível no cerne de um dispositivo de reprodutibilidade: a aparência reprodutível da imagem re-vela a consistência irreprodutível das singularidades que ela acolhe.

Entre todos os tempos que concorrem na superfície acolhedora de qualquer imagem fotográfica, pode-se destacar três tempos que permanecem irredutíveis entre si e que envolvem possibilidades diferentes de cálculo e de jogo: o tempo da captura (que envolve o cálculo do tempo de exposição e o jogo do acaso), o tempo da revelação (que envolve o cálculo dos tempos de processamento e o jogo da plasticidade) e o tempo da aparência (que envolve o cálculo dos tempos de circulação e de comunicação e o jogo da disseminação).

O momento decisivo

Tempo e movimento se entrelaçam na nossa experiência como os fios da corda bamba sobre a qual caminha nossa consciência. Por isso, perder a consciência – no sono ou no sonho da razão, no delírio, no entorpecimento… – equivale a uma queda da corda, ou ao menos a um desequilíbrio: sem noção do tempo, o movimento que se faz confuso, a desorientação. Na imagem fotográfica instantânea, o congelamento do tempo equivale à interrupção do movimento pela fixação de um de seus instantes. Vendo uma imagem fotográfica instantânea, experimentamos uma expansão da nossa consciência: continuando sua caminhada sobre a corda que se tece de tempo e movimento, a consciência se encontra diante de uma paragem, na qual ela pode passear, como se na corda bamba se abrisse uma clareira.

Naquele que pode ser considerado um dos textos mais difíceis e mais intensos da teoria da imagem, o ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin, o autor discute os sentidos em que a fotografia (e o cinema), ao possibilitar(em) a reprodutibilidade técnica da arte e do mundo, abre(m) experiências novas para a sensibilidade humana, propondo o conceito de inconsciente ótico ou visual. Quando falo em expansão de consciência pela fotografia, estou pensando na forma pela qual as imagens fotográficas abrem a clareira do inconsciente ótico ou visual para nossos olhos. O cinema, como argumenta Benjamin, leva esse movimento de expansão da consciência em outros sentidos.

Mesmo que nossos olhos não se dediquem ao passeio na superfície de uma ou outra imagem com que nos deparamos, os efeitos da paragem da consciência perduram, persistem, insistem. O poder sugestivo de todo tipo de imagens – tão largamente explorado pela publicidade e pelo marketing – alcança, na fotografia, possibilidades muito singulares de intensificação, relacionadas ao fato de que a imagem fotográfica constitui uma impressão luminosa da realidade, mesmo quando o resultado é abstrato ou o processo está atravessado por evidentes formas de manipulação.

Se a imagem fotográfica convida nossa consciência para uma paragem e para um passeio na clareira que abre no fluxo do tempo e do movimento – permitindo que nós possamos ver o que se passa, por exemplo, com o carcará que a Marina fotografou, no instante em que o animal inicia seu voo – o ato fotográfico passa com frequência pela pressa: é preciso ser rápido para capturar o que Henri-Cartier Bresson chamava de momento decisivo. Num sentido, ao passeio do espectador na imagem fotográfica do carcará corresponde o passo apressado que abriga o ato fotográfico. É o descompasso entre o passeio do espectador no tempo da aparência e a pressa de quem fotografa no tempo da captura que marca a distância entre o clique e a visão da imagem. Em outro sentido, à rapidez do clique que capta o momento decisivo, corresponde a lentidão da visão que abriga o momento indecidível da imagem. É talvez por causa desse descompasso que a Marina comentou, contextualizando um pouco o momento do clique, o tempo da captura: “sempre achei que deveria ter feito na horizontal, mas eu estava dentro de um carro em movimento, nem deu tempo de pensar muito”.

A imagem movimentada

O tempo e o movimento só aparecem para a fotografia e só tomam corpo na imagem fotográfica sob a forma de fantasmas. Ronaldo Entler diferencia três formas de representação do tempo na fotografia: denegação (quando o movimento se completa na imaginação do espectador), a inscrição (quando o movimento deixa um rastro que tende à abstração na superfície figurativa da imagem) ou a decomposição (quando o movimento só aparece na reunião de uma multiplicidade de imagens, no intervalo que separa os instantâneos).

No instantâneo do carcará, o movimento do voo aparece como fantasma. Estamos no terreno da denegação, que corresponde no tempo ao que no espaço se costuma denominar extra-campo, fora-de-campo ou fora-de-quadro (conceitos que seria preciso em algum momento diferenciar com mais rigor). É como se, decifrando o movimento do voo ali onde a aparência mostra apenas a fixidez da paragem, nós tomássemos consciência de algo que está além do instante, o fora-de-instante ou o extra-instante. É o que faz da imagem fotográfica uma imagem movimentada, mesmo sem movimento algum que lhe seja próprio.

O tempo e o movimento são, ao mesmo tempo, o que a fotografia não pode não perder e o que ela não cessa de insinuar: seu exterior constitutivo, a falta que a define. No tempo e no movimento que se perdem, o carcará terá seguido o itinerário de sua vida, encontrando talvez seu fim. Em todo caso, no abrigo fotográfico, sua figura permanece como pura aparência, ao abrigo do tempo, e um instante do tempo singular de sua existência se abre para nossas consciências, como a clareira

Que passeios você faz na foto da Marina? O que a imagem do carcará sugere a você? Você concorda com a Marina que a foto ficaria melhor se tomada na horizontal? Por quê? Deixe sua opinião na caixa de comentários!