Este artigo foi originalmente publicado no Visual Culture Blog. A seguinte tradução de Marcelo Ribeiro foi publicada com a permissão do autor, Marco Bohr (Twitter, Facebook).
Neste post, eu quero abordar a fotografia cinematográfica [cinematography] altamente hipnotizante, assim como conceitualmente carregada, da popular série de TV True Detective, dirigida por Cary Joji Fukunaga. Este post foi provocado por um travelling épico de seis minutos – que aparece no final do quarto episódio – que já está sendo celebrado como um significativo divisor de águas na história da Televisão. Em vez de se concentrar sobre os detalhes técnicos ou narrativas específicas exploradas no enredo, este post busca estabelecer que a fotografia cinematográfica [cinematography] em True Detective realiza, ativamente, empréstimos de outras formas de mídia visual e, assim, contribui para um discurso de representação mais amplo.
Situada nos anos 1990 na Louisiana, True Detective conta a história de dois detetives de homicídios que, apesar de sua óbvia antipatia mútua, tornam-se uma bem sucedida equipe em sua missão de resolver uma série de assassinatos baseados no ocultismo. Desde o início, é aparente que os criadores de True Detective escolheram usar uma estética visual cuidadosamente considerada, na qual os dois personagens principais, interpretados por Matthew McConaughey e Woody Harrelson, são justapostos contra a erma paisagem industrial de Louisiana. Essa justaposição entre o enredo e a paisagem torna-se um motivo recorrente, como na representação de uma igreja arruinada pelo fogo ou em várias outras tomadas que mostram os detetives atravessando o estado em seu carro.
A forte ênfase na paisagem industrial de Louisiana em True Detective evoca uma comparação com a série de fotografias de Richard Misrach intitulada Cancer Alley. Nessa série de obras fotografadas na Louisiana em 1998, Misrach explorou comunidades em condição de pobreza abjeta, que estão localizadas em grande proximidade a indústrias petroquímicas altamente poluentes. As fotografias de Misrach aludem claramente à noção de que uma indústria tóxica sugou toda a vida das comunidades próximas, que já lutavam contra níveis extremos de pobreza. Em True Detective, a fotografia cinematográfica provoca uma conclusão similar, na medida em que as torres de resfriamento e as chaminés do cinturão industrial de Louisiana sempre projetam seus grandes vultos sobre a carência social e o crime.
Outras cenas em True Detective claramente indicam que o diretor Cary Joji Fukunaga está em dívida com a fotografia. Há, por exemplo, o breve momento em que o personagem interpretado por Matthew McConaughey, Rustin Cohle, observa pela janela do carro e faz contato visual com uma menina, enquanto o carro segue adiante. Nessa cena, a câmera assume um ponto de vista subjetivo (o ponto de vista do protagonista) para estabelecer empatia com Cohle, que perdeu sua jovem filha em circunstâncias traumáticas. Esse ponto de vista subjetivo (e empático) tomado a partir da posição privilegiada de um carro em movimento é altamente reminescente do clássico livro de fotografias de Paul Fusco, Funeral Train – uma bela série de fotografias representando pessoas em luto que prestam seu respeito a Bob Kennedy em sua viagem póstuma através da América.
Em True Detective, a feiura de crimes como assassinato, estupro, violência sexual, sequestro e abuso infantil é, às vezes, contraposta a cenas filmadas com um olho perspicaz para a beleza. É o caso de outro ponto de vista subjetivo, filmado através da janela frontal do carro dos detetives, quando este se aproxima de um bordel ilegal escondido entre árvores exuberantes. O enquadramento da cena através da janela do carro cria uma mise-en-scène que faz uma referência inquietante à Primavera de Boticelli. Na medida em que o carro se aproxima, as garotas apresentam seus corpos e posam para os dois detetives. Ainda que o carro se aproxime delas, efetivamente parece que as garotas estão se aproximando do carro. É um momento profundamente ambíguo, que apenas incrementa as conotações sexuais bastante fortes (!) exploradas na série.
Em numerosos níveis, True Detective também parece fazer referência ao filme visualmente deslumbrante Beasts of the Southern Wild, de 2012. Ambos são situados em comunidades remotas na Louisiana, ambos tratam de pobreza e carência social, porém ambos também veem beleza num ambiente de outra forma extremamente caótico. Além disso, ambos incorporam noções de realismo mágico como uma ferramenta ótica que busca representar um sentido de trauma. Enquanto as alucinações de Cohle vistas em True Detective são o resultado de anos de abuso de drogas, a principal protagonista de Beasts of the Southern Wild é uma menina que vaga, psicologicamente, no interior de ambientes ficcionais apenas para conseguir sobreviver. Em ambos os exemplos, a câmera não simplesmente representa a pessoa que experimenta a alucinação ou fantasia, mas, antes, ativamente incorpora esse elemento fantástico na própria cena.
Enquanto assiste True Detective, o espectador fica cada vez mais com a impressão de que Fukunaga e sua equipe parecem seguir um estilo visual muito distinto. Em comparação com outros dramas policiais recentes, como The Wire ou mesmo a muita celebrada série televisiva Breaking Bad, esse estilo visual é muito mais acentuado e, na falta de um termo melhor, fotográfico. O que quero dizer com esse termo é que True Detective é filmado de tal forma que cenas individuais parecem estar entrelaçadas como uma série de fotografias. O cuidado e a atenção em relação à construção das imagens em True Detective pode ser comparado aos tableaux [quadros] em larga escala muito meticulosamente compostos pelo fotógrafo Gregory Crewdson. O espectador está acostumado a um tal nível de atenção em relação a tomadas individuais no cinema – porém tal atenção é rara para um programa de TV (no meu conhecimento, a série de TV australiana The Slap é outra exceção). True Detective é filmado como uma experiência visual que não simplesmente sustenta o enredo, mas que se torna, efetivamente, o próprio enredo.
Gostaria de agradecer Clément Verger, Jonathan Hobin, Diana Schnelle-Perry e Jennifer Park por suas contribuições em relação a esse post.
Este artigo foi originalmente publicado no Visual Culture Blog. A tradução acima de Marcelo Ribeiro foi publicada com permissão do autor, Marco Bohr.
Marco Bohr é fotógrafo, professor e pesquisador em cultura visual. Nascido na Alemanha, trabalha na School of the Arts da Loughborough University, em Londres. Siga-o no Twitter e no Facebook.