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Fisionomia e fisiognomonia da merda

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No fim das contas, o que está em jogo é nossa relação com a merda. Vejam, por exemplo, o debate sobre o emoji da merdinha e sua possível multiplicação em diversos emojis de merdinha, que expressariam emoções variáveis.

Além da felicidade sorridente já disponível, devidamente reconhecida pelo consórcio Unicode, desde 2010, sob o registro 1F4A9, e codificada na linguagem Emoji 1.0, desde 2015, como “Pile of Poo” (“Monte de Cocô”, em tradução livre), a merda passaria a assumir outras emoções, aproximando-se do estatuto do rosto nas relações humanas.

O documento que detalha a proposta reconhece a popularidade da merdinha sorridente, atribui a ela um sentido irônico e discorre sobre os sentidos de um emoji “Frowning Poo” (“Cocô carrancudo”, em tradução livre). Traduzo abaixo um trecho bastante significativo, mas recomendo a leitura do documento completo:

A popularidade avassaladora do emoji do cocô sorridente na cultura pop sugere que um emoji COCÔ CARRANCUDO pode ser recebido com fervor similar. COCÔ CARRANCUDO pode expressar um conjunto de significados que o cocô sorridente não pode. Ali onde o emoji do cocô sorridente apropriadamente transmite ironia (o que há de feliz sobre as fezes?), o emoji COCÔ CARRANCUDO permitiria que os usuários discutissem coisas infelizes que são de fato uma merda [shitty] ou sobre as quais ainda não conseguem fazer piadas. Ali onde o cocô sorridente confere frivolidade [levity] para uma situação ruim, o COCÔ CARRANCUDO oferece gravidade e reconhecimento de algo difícil ou doloroso.

Estamos diante da emergência de uma ciência, talvez: do reconhecimento da fisionomia da merda, passamos à necessidade de pensar uma fisiognomonia da merda. Mas esse gaio saber tem uma genealogia.

Semiologia da merda

A gente pode começar lembrando a importância filosófica, antropológica e histórica da questão da merda. A merda, sim, o cocô, a bosta, o excremento, o barro. Vejam quantos nomes sugestivos (o barro é, afinal, uma das figuras da criação da vida).

A gente poderia lembrar, por exemplo, de como Slavoj Zizek, numa de suas diatribes mais densas, associa as tradições filosóficas francesa, germânica e anglo-saxã aos tipos de privadas que França, Alemanha e Inglaterra usam e ao modo como, em cada uma delas, se estabelece uma relação diferente com a merda (e, portanto, com a essência, a realidade, a coisa-em-si etc.). É uma argumentação fantástica que está ali no começo de um livro de 1997 intitulado The Plague of Fantasies.

É mais ou menos assim: o buraco da privada alemã típica mantém a bosta exposta frontalmente, para exame e inspeção, o que corresponde à “minúcia reflexiva” (“reflective thoroughness”) e ao conservadorismo da tradição germânica. Na privada francesa, o buraco leva a bosta pra trás, fazendo-a desaparecer, o que corresponde à “pressa revolucionária” (“revolutionary hastiness”) e ao radicalismo da tradição francesa. Finalmente, o buraco da privada anglo-saxã representa uma espécie de síntese, pois a merda fica visível, mas coberta com água e, portanto, não pode ser inspecionada, o que corresponde ao “pragmatismo utilitário” (“utilitarian pragmatism”) e ao liberalismo da tradição inglesa.

A gente poderia lembrar, igualmente, de como nossa merda é importante em termos médicos e até mesmo existenciais: evidencia problemas, revela sintomas e guarda sinais que é sempre necessário observar, interpretar e decifrar.

Há toda uma sintomatologia, uma semiologia da merda, que é ao mesmo tempo médica e histórico-cultural. É uma semiologia visceral, porque preocupada com o interior mais carnal do corpo, com as tripas e as vísceras quase monstruosas que o habitam, com a fisiologia que se torna legível esteticamente na merda. É ao mesmo tempo uma semiologia sideral, porque interessada no modo como a merda cifra os desejos e as emoções mais inquietos de um sujeito, as aspirações mais amplas de sua alma e os movimentos mais abstratos de seu espírito em um céu de astros regentes dos humores terrestres.

Fisionomia da merda

Mas tergiverso: existe ou existiu um debate sobre o emoji da merdinha no campo em que se decide a linguagem dos emojis. Sinceramente não sei como as coisas se desenrolaram depois das notícias sobre isso que circularam no final de 2017.

É um debate sobre a ampliação do conjunto de emojis da merdinha, sobre o reconhecimento oficial da possibilidade de associar diferentes emoções ou estados de humor à merda, que é, aqui, definitivamente, um dos avatares do rosto. A rostidade da merda.

Políticas do código

A gente fica se perguntando muitas coisas quando pensa sobre isso. Quem é que aprovou o emoji da merdinha? Em que condições se vai definindo – a partir de um acúmulo de debates como esse, de decisões técnicas e estéticas, de sedimentações ideológicas – como significam, como produzem efeitos de sentido, em suma, como operam semiologicamente os diversos dispositivos informacionais com que trabalhamos cotidianamente, que nos circundam e nos habitam de modos que ainda mal adivinhamos? Como essas máquinas todas (os computadores, os celulares etc.) codificam e decodificam a linguagem e o mundo? Como as máquinas traduzem códigos em imagens (e vice-versa)? O que os códigos e as imagens significam e produzem em sua circulação?

Há uma dimensão política do código, e o debate sobre o emoji da merdinha é um debate sobre as disputas que constituem esse campo. O debate sobre o emoji da merdinha é um debate sobre o lugar do código binário, da máquina e da inteligência artificial no nosso mundo comum. É também um debate sobre a história da escrita, do hieróglifo ao alfabeto fonético, incluindo a codificação matemática do mundo que os algoritmos realizam, sem que se apaguem, em sua matemática profunda, os rastros de questões humanas, demasiado humanas, como ideologias, racismos etc. É, em suma, uma debate crucial, que só parece bobagem se a gente tiver uma definição muito boba de bobagem, convenhamos. Afinal, bobagem é vida, vida é bobagem. Que merda.

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