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Notas sobre a neve negra

No inaugural Afrique sur Seine (África no Sena), de 1955, um curta de pouco mais de 21 minutos, Mamadou Sarr, Paulin Vieyra e outros estudantes africanos do Institut d’hautes érudes cinématographiques (IDHEC, atual FEMIS) reivindicam o direito de olhar, filmando a metrópole em que experimentam o desterro, diante da interdição estatal de filmagens nos territórios coloniais franceses na África.

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Et la neige n’était plus (E não havia mais neve, 1965), de Ababacar Samb-Makharam, encena o retorno às origens após o desterro metropolitano como uma experiência contraditória do desejo. A imaginação da possibilidade de uma comunidade descolonizada depende do desejo de um retorno às origens que permanece impossível como a “neve negra” que o protagonista promete a sua amada. Para a imaginação colonial que predomina no cinema, a descolonização aparece como a impossibilidade delirante dessa “neve negra” que, como as peles negras, a história do cinema nunca tinha sabido filmar fora do regime do exótico. Para os cinemas africanos emergentes na década de 1960, trata-se de descobrir, afinal, o que pode vir a ser a “neve negra”, em experiências do cinema que reivindicam o direito ao delírio e dedicam-se a deslocar e a redescobrir a potência criadora da arte cinematográfica. Se a “neve negra” não existe e constitui, portanto, a impossibilidade mais absoluta, o que se torna necessário é inventar a “neve negra”, que se revela a cifra impossível de algo que ainda não tem nome.

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Safi Faye é a diretora daquele que é reconhecido como o primeiro longa-metragem distribuído comercialmente de autoria feminina da África subsaariana. Kaddu Beykat (Carta Camponesa), de 1975, projeta seu discurso epistolar sobre a terra da realizadora, sobre sua família e as paisagens de sua aldeia serere no Senegal, endereçando-se ao espectador como ao destinatário insondável de uma carta roubada. A narrativa tem como pano de fundo as dificuldades econômicas diante das demandas estatais e da integração da vida local nos circuitos da economia nacional e global. O protagonista, Ngor, deixa a aldeia para buscar trabalho na cidade, com o objetivo de conseguir recursos para se casar com Coumba. O filme se desdobra entre a deriva epistolar e a teleologia narrativa, articulando uma abertura para o real que é inseparável de um trabalho analítico da dívida como dispositivo de poder.

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Djibril Diop Mambéty tem em Touki Bouki uma de suas obras-primas. Em 1973, o filme interroga de forma irreverente a experiência histórica pós-independência, fazendo do retorno às origens uma deriva inventiva e desdobrando as contradições de toda relação com a terra em que algum pertencimento se torna possível. Pouco se pode dizer do filme de Mambéty sem reconhecer os deslocamentos experimentais que impõe à iconografia tradicional e à iconografia nacional: Mory é um pastor, que transita pelas ruas de Dacar sobre uma motocicleta; Anta é a estudante universitária que, junto com Mory, sonha com uma vida de riquezas em Paris. Touki Bouki carrega uma melancolia irreverente, cuja intensidade sobrevive ainda hoje como uma interrogação da possibilidade de uma comunidade descolonizada.

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Antecipando-se em 1998 à virada do milênio, em filme encomendado para uma série em que diferentes cineastas lançam seu olhar sobre os anos 2000, Abderrahmane Sissako dedica-se a pensar as condições da vida na terra. La vie sur terre (A vida na terra) atualiza e renova as interrogações sobre as formas de relação com a terra que atravessam a história dos cinemas africanos. Dialogando com a forma epistolar, que emerge em cartas endereçadas ao pai, contendo trechos de textos de Aimé Césaire, um dos grandes pensadores da Négritude e do afropolitismo, o filme representa o retorno ao país natal na época do desterro migratório pós-colonial. Com o filme de Sissako, será possível discutir como alguns traços da reivindicação do direito de olhar, narrar e imaginar o mundo, que aparece como uma reivindicação de retomada de raízes e reterritorialização do desejo, no contexto da luta anti-colonial, são transformados com a intensificação dos fluxos da globalização, que aprofundam formas de desenraizamento e desterritorialização.