Olhar com outros olhos
Sem que isso tivesse sido planejado, as primeiras fotografias enviadas para o projeto Outros Olhos (que está desativado até segunda ordem) representam animais: uma arara, um carcará e um sabiá-laranjeira. Talvez o gato de Brassaï (ou seu fantasma) tenha projetado a sombra de seu enigma sobre o projeto, a começar pela cifra do nome. Afinal, o que está em jogo na expressão outros olhos?
Olhar com outros olhos, como se diz, é dar uma nova chance. É tentar ver a mesma coisa, o mesmo mundo, a mesma questão, de uma maneira diferente, que retira a coisa, o mundo e a questão de seu sentido próprio, de sua mesmice, de sua identidade. Ao olhar com outros olhos, podemos ver o que não tínhamos visto, podemos descobrir informações que desconhecíamos, podemos aprender. O que quer que seja, só aprendemos a olhar com outros olhos na medida em que desaprendemos: nos desfazemos de parte de nossa bagagem, nos entregamos ao que acontece, imprevisível, quando olhos diferentes dos nossos se voltam para a mesma coisa que nós, o mesmo mundo, nós mesmos – uma aparência qualquer, em suma – e nós tentamos participar da diferença desses olhos que não nos pertencem e que não conseguimos simplesmente domesticar.
É como metáfora do diálogo que entrelaça e transforma interlocutores, portanto, que escolhi o nome Outros Olhos para o projeto de comentar fotografias alheias: meus olhos permanecem outros para quem envia suas imagens, assim como seus olhos permanecem outros para mim. Olhar com outros olhos é abrir um espaço eventual para que a aparência de alguém, de algum objeto ou de alguma situação transforme, a partir da sensibilidade, os significados ou as interpretações.
1. Sem o privilégio e o jugo da memória que constituem o olhar de Dago, a foto do filhote deitado de lado, com a pata estendida em direção à câmera, me lembra de imagens de publicidade. O equilíbrio da composição, com a cabeça centralizada e o corpo do animal estabelecendo um contraponto visual à parte visível do chão, sugere um cuidado do enquadramento que, no entanto, me parece perturbado e prejudicado pela presença da assinatura no canto inferior direito. É como se a assinatura disputasse atenção com o restante da imagem. Em todo caso, os ecos da publicidade são peculiares: não se trata de uma imagem de felicidade estereotipada (o cachorro pulando, brincando, correndo…), mas qualquer publicidade poderia inscrever a visão desse filhote numa narrativa que tem como final redentor um produto que promete levar, enfim, a felicidade do animal à família. No fundo, são os fantasmas da publicidade que assombram a foto, como se a imagem fosse habitada por outros personagens além do cachorro e do autor que assina: a família, de um lado, como figura do humano a que pertence o animal; o produto, de outro lado, como figura do aparelho a que pertencem tanto o animal quanto a família. Se a imagem me sugere tudo isso, é porque a lembrança da publicidade, e não de acontecimentos pessoais, definiu essa passada de olhos, esse passeio do olhar.
A antropomorfização do animal
Se foram animais os primeiros objetos dos outros olhos, é talvez para evidenciar que uma das figuras mais cruciais da alteridade, que constitui nossa forma de olhar o mundo, é justamente aquela que, como diz Jacques Derrida em O animal que logo sou (a seguir), “eles chamam ‘animal'”. A figura do animal lembra com insistência que há limites para o movimento de abertura para a diferença que se insinua no ato de olhar com outros olhos.
As fotos de Dago Paulo R e de Vanessa Maia Cassettari que justapus acima representam um tipo de animal que permanece estranhamente familiar. Os cachorros talvez sejam os mais domésticos entre os animais domésticos. É como se sua alteridade, sua diferença, seus outros olhos, estivessem muito próximos de nós, até o ponto de se experimentar o estranhamento da alteridade como se fosse familiar, tratando os cachorros como se fossem seres humanos. De fato, a antropomorfização do animal constitui um dos recursos mais frequentes de redução da alteridade e é o que está em jogo em inúmeras formas de representação do animal, desde as fábulas de Esopo até os desenhos animados que o cinema inscreve no sonho coletivo.
Assim, quando estamos diante de representações de animais, é sempre crucial se perguntar sobre sua antropomorfização, isto é, sobre como se constrói a relação de diferença e identidade, de estranhamento e familiaridade, que nos entrelaça. Pode parecer uma questão distante de fotografias como aquelas que vemos mais acima, por exemplo, mas na sua interrogação está em jogo a consistência mesma do olhar, por mais trivial que seja, que lançamos sobre nós mesmos, diante dos animais.
2. Sem as intensidades da narrativa, que a imagem é incapaz de reconstruir por si só e está disponível apenas a partir das palavras de Vanessa, meu olhar vaga à procura de um ponto de ancoragem, a partir do qual fundar uma deriva. Percorro os contornos e as formas dos objetos de madeira, as sinuosidades das telhas, decifro sua disposição espacial na curta profundidade do campo, percebo o contraponto visual do verde que, acima e abaixo, de um lado e de outro, enquadra a cena e é, antes de tudo, seu chão, delineio o cachorro que olha para a câmera, destacando-se sobre o fundo apenas de forma muito sutil, já que sua figura compartilha com o fundo cores, tonalidade e luminosidade. Mas não encontro nada que me toque. O toque da imagem: eis aquilo que permanece sempre pessoal (e que, diga-se de passagem, como um lembrete, toda a publicidade e todo o espetáculo da mercadoria sonham capturar em suas redes, em seus cálculos, em seus jogos). A imagem se torna opaca para mim, em sua absoluta transparência: vejo-a como se não a visse, como se me atravessasse ou eu a atravessasse, despercebido. Há muitas imagens assim: vendo-a, não nos perdemos em sua superfície; os olhos passam rápido demais; o olhar não passeia. No futuro, talvez. Ou olhando com outros olhos, que me faltam irremediavelmente. Alguém se arrisca a me emprestar seus olhos?
Os usos sociais da fotografia
Em que pesem as implicações filosóficas da representação de animais, as fotos de Dago e Vanessa suscitam outras questões a respeito da fotografia e, especificamente, de seus usos sociais. Destinada a divulgar a existência de filhotes para doação, a primeira foto de Vanessa assume em seguida um papel similar ao da foto de Dago: constitui uma técnica da memória.
Entre os usos sociais da fotografia, seu papel de técnica da memória assume diversas configurações. Pode ser um recurso da memória coletiva, registrando momentos históricos importantes, documentando formas de vestir, modos de vida e estilos, participando da demarcação do calendário oficial de uma nação, de uma instituição ou de um local ou contrapondo ao tempo oficial os instantes fragmentados de memórias mais subterrâneas. Pode ser também um recurso da memória pessoal, em que se trata menos de buscar os rastros de uma coletividade mais abrangente do que de reencontrar a sinestesia das lembranças familiares, de reconhecer em detalhes insignificantes os sentidos mais profundos da convivência, da amizade e do amor.
Entre a memória coletiva e a memória pessoal, a fotografia – que pode se prestar ao mesmo tempo a ambas – participa de um paradoxo característico de nossos tempos: a disponibilidade absoluta – sobretudo enquanto visibilidade – de elementos que não nos pertencem – enquanto experiência. É um assunto que Georg Simmel discute em um ensaio de 1911 intitulado “O conceito e a tragédia da cultura” (disponível no livro Simmel e a modernidade, infelizmente esgotado), ao descrever “a situação problemática típica do homem moderno”:
o sentimento de ser circundado por inúmeros elementos culturais que não lhe são desprovidos de significação, mas que também não são, em seu fundamento, plenos de significação – elementos culturais que no conjunto possuem algo de opressivo, porque ele não pode assimilar interiormente a todos individualmente, e tampouco pode simplesmente descartá-los, uma vez que eles pertencem potencialmente à esfera de seu desenvolvimento cultural. Poder-se-ia caracterizar isso com a inversão da frase que qualificava os primeiros franciscanos em sua pobreza serena, em sua absoluta libertação de todas as coisas, que de alguma maneira conduziriam o caminho da alma através de si e fariam dele um caminho indireto: nihil habentes, omnia possidentes – em vez disso, os homens de culturas muito ricas e sobrecarregadas omnia habentes, nihil possidentes.
Em um ensaio de 1933 intitulado “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin também discute essas questões, perguntando “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?”. Sabemos muito bem do que Georg Simmel e Walter Benjamin estão falando. Nossa convivência com as imagens está cada vez mais marcada pela saturação e pelo excesso. Vemos tantas imagens e experimentamos tão poucas, e tão pouco a partir delas… As imagens nos tocam incessantemente, buscando nos emocionar, nos convencer ou nos fazer acreditar em algo, até que nossa sensibilidade parece estar anestesiada, como se suas pulsações mais imprevisíveis fossem, finalmente, reduzidas a mais do mesmo, completamente domesticadas. Na sociedade do espetáculo, as imagens domesticam nosso olhar (e nossos desejos) assim como nós pretendemos domesticar os animais.
3. Para mim, essa imagem aparece como um hieróglifo que condensa visualmente o tema da domesticação do olhar na sociedade do espetáculo. A metáfora da domesticação se torna literal: em primeiro plano, o cachorro adestrado obedece à mão humana. O braço que sustenta a mão delimita o espaço mais branco da foto, como um sol que projeta sua luminosidade sobre todo o resto, definindo seus contornos, suas sombras, suas formas. Na sociedade do espetáculo, o passeio do olhar e toda a deriva a que os olhos podem se entregar são domesticados por uma série de dispositivos (entre os quais a publicidade ocupa um lugar central). Na domesticação do olhar, é como se os olhos se tornassem todos os mesmos, como se fossem substituíveis uns pelos outros, como se só pudessem se voltar para o mesmo lugar, no mesmo movimento: o sol branco do espetáculo.