Percepção e técnica
A relação entre figura e fundo é um dos componentes da percepção visual humana que repercute de forma mais intensa na vida das imagens. Conseguimos identificar melhor um objeto, delimitando seus contornos com mais nitidez, quando ele se destaca, por contraste, sobre um fundo que tende à indefinição e à indistinção. Num jogo de escalas, a cada plano do campo visual corresponde uma instância da segregação figura-fundo, de modo que o que é figura num plano pode se revelar o fundo de outra figura em outro plano, e assim por diante.
Quando vemos uma imagem que representa visualmente o mundo, nossos olhos se apressam a diferenciar figura e fundo, com base nos tamanhos relativos dos objetos representados, nas suas formas, texturas e cores, decodificando o que se passa em duas dimensões na imagem como a representação de um espaço tridimensional (como aquele em que nos encontramos, no mundo). A ilusão de profundidade que marca a representação em perspectiva constitui apenas uma forma mais sofisticada – por cálculos geométricos que organizam uma projeção ótica com base em regras convencionais – desse jogo ao qual se entregam nossos olhos, como crianças afoitas. Mesmo quando a perspectiva está ausente ou ao menos rarefeita num desenho infantil, por exemplo, é na fronteira entre figura e fundo que nossos olhos procuram seu caminho.
Mas talvez devêssemos inverter o raciocínio da primeira frase do parágrafo anterior e dizer que, numa perspectiva histórica e antropológica, é a relação entre figura e fundo na vida das imagens que repercute na percepção visual humana. O que é fundamental para a antropologia é ir além do reconhecimento de que o ser humano produz cultura: antes de produzi-la, tanto do ponto de vista da evolução da espécie (filogênese) quanto do ponto de vista do desenvolvimento individual (ontogênese), o ser humano tal como o conhecemos hoje é um produto da cultura. Para discussões mais detalhadas dessas e de outras questões, indico a leitura de A interpretação das culturas, do antropólogo Clifford Geertz. Outro livro interessante sobre o conceito é A invenção da cultura, de Roy Wagner. Para uma introdução mais geral ao assunto, ver A noção de cultura nas ciências sociais, de Denys Cuche.
Sempre que o espelho superficial das imagens se agita – especialmente por causa de transformações nas técnicas de fabricação e nos aparelhos que dão vida às imagens e ao sensível – a percepção recebe o impacto das ondas, primeiro em seu litoral – em que o que se passa nas imagens bate como o choque da rebentação do mar – e em seguida em suas intermináveis vias – nas quais se perde uma parte do impacto litorâneo. Se as técnicas e os aparelhos se transformam com rapidez, inscrevendo-se no tempo curto da história da tecnologia e agitando o espelho das imagens com que convivemos, a percepção que recebe o impacto dessas transformações possui uma consistência mais duradoura, inscrevendo-se no tempo (sem dúvida mais longo) da história da sensibilidade. Um dos ensaios mais importantes de Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, discute justamente o impacto da emergência dos aparelhos fotográfico e cinematográfico sobre a percepção e a sensibilidade humanas. É leitura fundamental para quem se interessa por fotografia, cinema e arte.
O simbólico
No cerne da relação entre figura e fundo, está a questão da legibilidade da imagem. Não se deve opor escrita e imagem como dois meios de expressão diferentes e estrangeiros entre si. Assim como a história da escrita passa pela história da imagem (e vice-versa), as operações cognitivas necessárias para a compreensão e a utilização da escrita e de imagens se entrelaçam (embora não cheguem a se confundir). Imaginamos palavras e palavreamos imagens. É preciso, aliás, suplementar a alfabetização tradicional, centrada no aprendizado da escrita, com o que tem sido chamado, a meu ver erroneamente (mas isso é assunto pra outro momento), de “alfabetização visual”, trazendo para o campo da educação a questão do aprendizado das imagens.
Quando se trata de ler a foto de Vanessa Maia Cassettari do filhote de sabiá-laranjeira “pronto para abandonar o ninho”, é preciso levar em conta o contraste intenso entre figura e fundo, um contraste que foi a tal ponto exacerbado na imagem que resulta em uma aparente inversão de valores cromáticos: o sabiá-laranjeira, também conhecido como sabiá amarelo ou de peito roxo, aparece escuro, quase completamente negro, como as sombras e os objetos que o circundam, confundindo-se parcialmente com seu ninho, enquanto o fundo condensa os valores cromáticos do amarelo (que predomina) e do roxo (em menores proporções) num alaranjado regular. O que está em jogo na inversão aparente dos valores cromáticos que marca a foto de Vanessa?
Podemos encontrar algumas pistas para responder essa pergunta nos comentários da fotógrafa, em especial sua observação passageira de que a ave se tornou símbolo do Brasil em 2002, seguida da breve narrativa dos acontecimentos por trás da imagem, envolvendo Vanessa, seu marido e a casa em que vivem: “No final de Outubro de 2010, uma sabiá-laranjeira fez um ninho na árvore da nossa garagem que é parcialmente coberta. Lá ela botou três ovinhos que foram devidamente chocados. Em 04/11 os filhotinhos nasceram, ainda pelados e com os olhinhos fechados. Pudemos acompanhar todo o crescimento deles, o que para nós […] foi muito emocionante. Depois do dia 20/11 eles abandonaram o ninho e então foram cuidados pelos pais que vinham ao jardim buscar frutas maduras para eles. O ninho continua lá, esperando a próxima família ocupá-lo.”
O que se passa entre a narrativa dos acontecimentos cotidianos em torno das aves, a imagem que registra um dos momentos desses acontecimentos e a interpretação da ave como símbolo do Brasil? De um ponto ao outro, vamos do particular ao geral, da consistência singular de alguns instantes à imponência pretensamente universal de um significado que se projeta para fora do tempo. Nesse caminho, a fotografia ocupa uma posição intermediária que condiz com seu papel de mediação: toda imagem fotográfica transforma uma cena irrepetível em uma configuração reprodutível, ligando a singularidade irredutível de seu referente à generalidade abrangente de seus múltiplos significados possíveis, conforme os contextos em que circula. O sabiá-laranjeira da garagem de Vanessa pode se tornar, pela fotografia e pelos comentários que a acompanham, entre tantas outras coisas, um símbolo do Brasil. No símbolo, a estética da foto de Vanessa e todos os seus elementos – que repercutem sobre a percepção como formas sensíveis – se associam à ideologia dos discursos de brasilidade e a seus valores – assumindo, dessa forma, sentidos culturais e históricos.
O diabólico
O que gostaria de sugerir é que, na foto de Vanessa, a inversão aparente dos valores cromáticos que se desenrola entre figura e fundo perturba a continuidade simbólica dos discursos de brasilidade que assombram a imagem. Se, etimologicamente, símbolo significa aquilo que vem junto num mesmo movimento, a foto de Vanessa introduz uma disjunção diabólica, num sentido preciso do termo (que obedece também a um certo jogo etimológico): aquilo que divide o movimento, que fratura a continuidade da significação. Há um deslocamento dos valores cromáticos da figura do pássaro, que simbolizaria o Brasil, para o fundo indistinto da imagem. O que me pergunto é: a esse deslocamento na relação entre figura e fundo corresponde algum deslocamento na relação entre estética e ideologia? Em outros termos, o fato de ter fotografado o sabiá-laranjeira de forma inusitada – compondo uma imagem que chega até a se aproximar da estética da abstração – consegue garantir que a imagem seja interpretada contra ou ao menos longe da associação simbólica entre o pássaro e a ideia de Brasil? O que vocês acham?
Uma resposta em “A figura e o fundo: estética e ideologia”
[…] para os escassos leitores do incinerrante. Diante dela, é preciso entrar num jogo de figura e fundo e adentrar a imagem como se fosse possível caminhar com os olhos, entre as bicicletas em […]