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Azul é a cor mais quente: alguns fragmentos analíticos

Azul é a cor mais quente corresponde a uma das verdades do cinema: o mundo, sua trivialidade, sua insignificância – isso é o suficiente.

Títulos: transbordamento

Há muito em jogo em um título. O título original de Azul é a cor mais quente é La vie d’Adèle (Chapitres 1 & 2). A diferença do título, assim como do nome da protagonista do filme, evidencia a distância do filme de Abdellatif Kechiche em relação ao romance gráfico de Julie Maroh, de que a obra do diretor franco-tunisiano constitui uma adaptação livre. Em vez de Le bleu est une couleur chaudeLa vie d’Adèle; em vez de Clémentine, Adèle.

Além do distanciamento e da liberdade assumidos por Kechiche em relação à obra adaptada, a mudança de título – que o título em português desfaz, mas que será preciso considerar, mesmo assim, em qualquer análise do filme – demarca alguns dos sentidos possíveis da narrativa. Em primeiro lugar, para dizê-lo rapidamente, em uma cifra: na vida de Adèle, há mais do que o azul.

De fato, mesmo nos dois capítulos de sua vida em que consiste o filme, o azul pertence, sobretudo, ao primeiro, quando Adèle conhece Emma, a garota de cabelos azuis, e as duas iniciam sua intensa relação; o segundo mostra a rarefação, a diluição do azul, desde logo, pela mudança da cor dos cabelos de Emma, que prenuncia, de alguma forma, as transformações pelas quais passa sua relação com Adèle.

La vie d’Adèle é um título que transborda a narrativa que contém: adivinhamos, de saída, que haverá mais. Quando o filme termina, nada está terminado. No transbordamento anunciado em seu título, o filme de Kechiche parece encontrar um dos impulsos que sustentam sua intensidade. A irredutível abertura a que nos destina seu plano final amplifica o movimento de transbordamento da narrativa, cujos traços vêm, finalmente, prolongar-se na memória e na imaginação do espectador.

Nomes: espetáculo e realismo

Há muito em jogo em um nome. A escolha do nome da protagonista de Azul é a cor mais quente condensa aspectos significativos da construção dramática do filme de Kechiche. Ao adotar o nome da atriz para designar, na narrativa, a protagonista de seu filme, o diretor participa de uma longa tradição que assume cada vez mais uma configuração ambivalente: entre o espetáculo do estrelato e a herança crítica neo-realista.

No sistema de celebridades alçadas à condição de estrelas cinematográficas – cuja formação remonta ao contexto de consolidação do cinema narrativo clássico, na década de 1920; cujo desenvolvimento atravessa importantes transformações com o advento do som sincronizado, na década de 1930; cuja articulação contemporânea deve ser pensada em sua relação com o fenômeno do blockbuster – o nome dos atores e das atrizes desempenha o papel de ícone transversal em relação aos filmes em que interpretam algum personagem.

Se cada personagem participa do código simbólico movimentado pela narrativa do filme em que se insere, a atuação da mesma estrela de cinema em papéis diferentes estabelece, entre os filmes, um eixo de associação, baseado na posição icônica do(s) ator(es) ou da(s) atriz(es). Não é preciso que a personagem tenha, na narrativa, o mesmo nome de quem a interpreta, para que o efeito espetacular do estrelato opere sua mágica. Efetivamente, tudo se passa como se o nome estivesse sempre lá: a estrela interpreta tanto as personagens que encarna quanto a si mesma, sua própria figura, sua própria aparição.

Na herança do neo-realismo, o procedimento de adoção do nome de atores e atrizes para as personagens que representam na tela obedece a razões de ordem inteiramente diferente. Por um lado, a permanência do nome aproxima realidade e ficção, seja por meio da utilização de atores não profissionais que, frequentemente, interpretam a si mesmos, seja por meio da sustentação de condições de encenação e de filmagem em que a ficção pode ser criada a partir da própria realidade: pode-se filmar a todo instante, mesmo quando não há ensaio, não há encenação, não há atuação, pois todo instante pode se tornar material fílmico, sem que seja necessária qualquer preocupação com a manutenção da ficção por meio dos nomes próprios das personagens, pois estes coincidem com os nomes próprios dos atores e das atrizes.

Na Adèle interpretada por Adèle Exarchopoulos, a motivação aparente decorre da herança do neo-realismo. De fato, a atriz não interpreta a si mesma, mas chamar sua personagem por seu próprio nome permite ao diretor filmar com maior liberdade, sem que seja preciso retornar ao roteiro e ao que ele delimita. Adèle é também um nome que a indústria do espetáculo procura domesticar, sobretudo depois da premiação do filme em Cannes: mesmo que passageiro, seu estrelato se manifesta, de saída, pelo fato de que, como corpo, Adèle Exarchopoulos interpreta, efetivamente, a si mesma. Dessa forma, ela faz espetáculo de si, ao mesmo tempo em que consegue inscrever esse espetáculo sob a forma de um acentuado realismo.

Metalinguagem, 1: literatura, cinema, devir-imagem

Os problemas de representação e pretensões de universalidade que atravessam Azul é a cor mais quente não são apenas questões estranhas à obra, apresentadas por parte da crítica ou dos analistas. Em vez disso, essas questões pertencem ao universo temático do filme, participam de sua diegese, isto é, do contexto em que suas personagens parecem vivas e sua narrativa pode se apresentar como um conjunto unificado de eventos, cujo encadeamento faz sentido. O filme aborda problemas de representação e comenta pretensões de universalidade; é preciso buscar os traços de como essa metalinguagem se elabora na tela, para que seja possível compreender, a partir do filme, as questões que lhe são imputadas a partir da realidade, como se a relação entre filme e realidade fosse dada, não problemática, inequívoca.

No início, em uma das aulas na escola, os colegas de Adèle leem trechos de um romance narrado em primeira pessoa por uma personagem feminina. Um dos colegas é um homem, que empresta sua voz, assim, às palavras de uma mulher. Mais adiante, quando Adèle conversa com Thomas, enquanto comem gyros, sobre o romance La vie de Marianne, de Pierre de Marivaux, ela fala de um dos aspectos que a interessa no livro: “Ele [Marivaux] se coloca no lugar de uma mulher.” Eis uma estrutura fundamental para a narrativa de Azul é a cor mais quente: a estrutura de dar voz a outros/as, de se colocar no lugar de outros/as.

Ao fazer de La vie d’Adèle o título de sua adaptação do livro de Maroh, Kechiche ecoa também o título do romance que Adèle gosta de ler, no qual de alguma forma pensa encontrar a si mesma. Assim como o escritor e dramaturgo francês, Pierre de Marivaux, que escreve no século XVIII, Kechiche narra a história de amor de Adèle e Emma por meio da perspectiva da primeira, que estrutura a narrativa: é um homem que filma uma história de amor entre mulheres a partir da perspectiva de uma delas, assim como Marivaux narra a história de Marianne em primeira pessoa.

Assim como no romance de Marivaux, a história de amor é também uma história de desigualdade social (embora talvez em menor grau no filme do que no livro): Adèle pertence a uma classe menos abastada (assim como a órfã Marianne), sua família experimenta o mundo a partir da televisão, que silencia as conversas na mesa de jantar, ela e seus amigos protestam pela educação; Emma participa de círculos mais abastados (assim como o aristocrata que se apaixona por Marianne, embora em menor grau), está na universidade de Belas Artes (em contraposição a Thomas, por exemplo, que está no último ano e investe em estudos aplicados), e sua família tem acesso ao patrimônio artístico francês, cujas pinturas adornam a sala de jantar de sua casa.

A relação entre o título do filme e o título do livro que participa da narrativa do primeiro delimita um dos eixos de intertextualidade em torno do filme e estabelece relações importantes entre literatura e cinema, que ajudam a entender o filme. O aluno que lê as palavras da personagem feminina no início da narrativa é comparável, em sua posição em relação ao livro que lê, ao espectador de cinema, que experimenta a vida de Adèle, mas há uma diferença crucial: enquanto o leitor de um livro dá voz a suas personagens (em sua mente ou em sua boca), o espectador de um filme experimenta a visibilidade das personagens.

A experiência da visibilidade das personagens depende da forma como o diretor do filme dá visibilidade a elas. Se, em La vie de Marianne, Marivaux se coloca no lugar de uma mulher para escrever, em La vie d’Adèle, Kechiche não pode simplesmente se colocar no lugar de uma mulher para filmar. Ele não filma em primeira pessoa, por assim dizer. Ao filmar a vida de Adèle a partir de sua perspectiva, Kechiche define a personagem como seu filtro narrativo, seu foco, mas a narrativa não se esgota nas palavras, nos gestos ou no rosto de Adèle. Em tudo aquilo que a ultrapassa, Azul é a cor mais quente se faz mais rico, pois permite ver indícios de outras experiências, de outras vidas, irredutíveis à sua, cuja visibilidade não depende de seus olhos e cuja aparição não depende de suas palavras.

Ao evidenciar a estrutura de dar voz a outros/as, de colocar-se no lugar de outros/as, que é a condição de possibilidade da narrativa de Azul é a cor mais quente e, pode-se dizer, de toda narrativa em geral, o filme obriga o espectador a considerar o que singulariza a experiência do cinema: o fato de que sua matéria-prima não é, em primeiro lugar, a voz ou a palavra escrita, mas a visibilidade mesma do mundo, seu devir-imagem. Assim como o cinema, a pintura, a que se dedica Emma, está relacionada ao devir-imagem do mundo, e é nesse contexto que a metalinguagem alcança, em Azul é a cor mais quente, a temática mais polêmica do filme: a representação do corpo feminino, do prazer e do sexo entre duas mulheres.


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Metalinguagem, 2: prazeres compartilhados?

As críticas à representação do amor e do sexo entre duas mulheres no filme de Kechiche não podem esquecer que sua narrativa não apenas encena esses temas, mas, em momentos específicos, aborda os problemas envolvidos na sua encenação. Adèle se torna objeto das pinturas de Emma, sua “musa”, como esta diz a certa altura, e seu corpo aparece nu nos quadros, assim como aparece, em alguns momentos, para o espectador na tela de cinema. Dessa forma, a representação do corpo feminino é, ao mesmo tempo, parte do que o filme fabrica e destina aos olhos espectatoriais e um dos temas que o filme aborda, que suas protagonistas experimentam em seu cotidiano (Adèle como objeto dos retratos, Emma como pintora etc.) e que várias personagens discutem, especificamente, na sequência da festa de comemoração do aniversário de Emma.

Se as cenas de sexo e sua forma de encenação do prazer feminino são um dos tópicos mais abordados nas críticas e nos comentários sobre o filme de Kechiche, é porque estão associados às possibilidades e aos limites do cinema na sugestão, na produção, na articulação do prazer. A teoria feminista do cinema, desde o clássico artigo de Laura Mulvey, intitulado “Prazer visual e cinema narrativo”, tem argumentado que o prazer é uma questão crucial da experiência cinematográfica, e que suas formas dominantes, associadas ao cinema narrativo clássico, tendem a pressupor um espectador ideal masculino como sujeito do prazer, enquanto o corpo feminino assume o lugar de objeto do voyeurismo espectatorial.

Em Azul é a cor mais quente, o prazer pode ser um efeito das imagens, e é nesse sentido que uma série de questionamentos se impôs sobre o alegado caráter heteronormativo da encenação do sexo entre as protagonistas pela câmera de Kechiche. Mas o prazer é, igualmente, um dos temas da narrativa: o prazer do sexo e do amor, de fato. E de forma crucial, na sequência da festa, emerge a questão: Será que o prazer pode ser compartilhado? Eis, de fato, a questão fundamental que o cinema parece incessantemente recolocar diante de nós: a partilha do prazer, sua insistente impossibilidade, os incontáveis suplementos que a realizam como fantasia, como fantasmagoria.

Na sequência da festa, as personagens comem, bebem e debatem o assunto, que se desdobra na consideração da história das representações do prazer feminino na pintura, que assumem, frequentemente, características místicas, mostrando o orgasmo feminino como experiência do êxtase. Como argumenta Julie Maroh, a encenação do prazer feminino e do gozo elaborada por Kechiche está ligada às concepções expressas na conversa entre as diversas personagens, na festa de aniversário de Emma. Para ela, o filme sacraliza a mulher, e isso é perigoso. Mas só podemos interpretar o que o filme nos apresenta como uma sacralização da mulher, mais exatamente do prazer feminino, se assumirmos o discurso das personagens na sequência da festa como se fosse equivalente ao discurso do filme, o que não me parece ser o caso, na medida em que a narrativa é construída a partir da perspectiva de Adèle.

Adèle permanece em silêncio, como os espectadores, diante da conversa sobre as representações do prazer feminino na pintura, assim como ela permanecera em silêncio, ao lado de Emma, quando observavam, num museu ou galeria, um grupo de esculturas de corpos femininos (outro momento metalinguístico da narrativa). No silêncio de Adèle, efetivamente, me parece ser possível reconhecer seu distanciamento – e o do filme – em relação ao discurso do prazer feminino como êxtase, ao mito do orgasmo feminino que sacraliza a experiência da mulher. Para ela, como no restante da narrativa, como em toda sua vida tal como se faz visível em Azul é a cor mais quente, o prazer, o amor e a dor são experiências intensas, que se inscrevem e que se partilham, contudo, na banal tecelagem cotidiana das coisas do mundo, na “misteriosa fraqueza dos rostos humanos” (para ecoar palavras de Sartre que aparecem no filme).

A invenção do cotidiano

No devir-imagem do mundo, o cinema encontra sua condição de possibilidade. Na visibilidade que se destina cada paisagem e cada detalhe, o cinema encontra sua matéria-prima. No prazer, o cinema encontra a partilha impossível que define seu horizonte. Azul é a cor mais quente corresponde a uma das verdades do cinema, que decorre dessas três últimas afirmações: para fazer cinema, o mundo, sua trivialidade, sua insignificância – isso é o suficiente, e toda ficção não passa de uma forma, mais ou menos sinuosa, de aproximação do real. O mundo basta, de fato.

É no uso dramático da música que o filme de Kechiche torna evidente a condição fundamental do cinema como aparelho de invenção de mundos, que começa e termina, talvez, na encenação da vida de Adèle, pela invenção do cotidiano. Pode-se dizer que a música aparece, sempre, em Azul é a cor mais quente, como música diegética, isto é, como parte do universo da narrativa, como um dos elementos que afetam as personagens em suas ações: como espectadores, escutamos apenas as músicas que as personagens escutam. Mas se a música aparece como aspecto da diegese, seu prolongamento ocorre, frequentemente, no filme, como uma espécie de descolamento, de afastamento entre a realidade diegética e sua expressão cinematográfica, como se o cinema se criasse, justamente, por meio da reinscrição da realidade (a língua da realidade, diria Pasolini).

Reproduzo parte do que escrevi na crítica do filme que publiquei no jornal online A Redação:

O primeiro encontro entre Adèle e Emma, ainda sem palavras, apenas uma troca de olhares, ocorre sob o som onírico de um instrumento chamado Hang, criado por Felix Rohner e Sabina Schärer, da empresa PANArt Hangbau AG (a música pode ser ouvida também no início do trailer do filme).

O instrumento é tocado por um músico de rua, sentado numa das calçadas por que Adèle passa. A música – que pertence ao espaço da realidade narrativa e que afeta as imagens a partir de dentro do que está sendo encenado – prolonga-se mesmo com o deslocamento da protagonista. Sua condição se transforma: em vez de referente em cena, que Adèle escuta tanto quanto o espectador, a música torna-se um aspecto expressivo do trabalho de encenação, que se dirige apenas ao espectador.

A transformação dos sentidos da música diegética, a passagem da condição de aspecto da diegese (plano de conteúdo) para a condição de elemento estilístico (plano da expressão), enfim, a reinscrição da realidade em que o cinema se realiza como processo criativo é o que Azul é a cor mais quente revela ter sido capaz de assumir não apenas como sua condição de possibilidade – todo cinema participa disso – mas como um de seus temas. Ao reinscrever a realidade de sua vida em seus quadros, como o corpo de Adèle, que amou e por quem continua a sentir imenso carinho, Emma é capaz de continuar, ali onde Adèle parece ter permanecido inapta diante da vida, presa a algo que acabou, incapaz de recriar seu mundo e de abrir novamente suas possibilidades. Na vida, como no cinema, o mundo basta, mas é preciso recriá-lo, interminavelmente.

Uma resposta em “Azul é a cor mais quente: alguns fragmentos analíticos”

Muuuito bom, Marcelo, nunca parei pra pensar no motivo o qual levou ao diretor mudar o título da adaptação fílmica da HQ . Um texto muito esclarecedor e interessante, obrigada.

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