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Heteronormatividade e representação em Azul é a cor mais quente (2013)

Eis as principais críticas a Azul é a cor mais quente e sua forma de representação do sexo lésbico, e algumas interpretações do longa como história de amor universal.

O que é heteronormatividade e o que isso tem a ver com Azul é a cor mais quente, de Abdellatif Kechiche?

Heteronormatividade é um conceito da teoria queer e do pensamento feminista e faz parte do debate intelectual e político contemporâneo sobre sexo, gênero e sexualidade. O termo designa a constituição da heterossexualidade como norma de comportamento, que se verifica em diversos contextos sociais. A heteronormatividade – ou heterossexualidade normativa, ou heterossexualidade compulsória – complementa a convenção da hierarquia de gênero, que privilegia o masculino sobre o feminino, com a interdição da homossexualidade como parte de formas de vida singulares, que produzem sentidos e efeitos não contidos nos horizontes imaginativos da heterossexualidade normativa.

A eficácia social e simbólica da heteronormatividade é perceptível na dificuldade de se pensar em relacionamentos homossexuais sem enquadrar as pessoas envolvidas em categorias características de relacionamentos heterossexuais. Essa dificuldade se manifesta, particularmente, nas recorrentes (e em geral frustradas) tentativas de identificação, na relação, de um pólo ativo e de um pólo passivo, de uma parte que desempenha as funções simbólicas identificadas com a noção de “homem” e de outra que desempenha as funções simbólicas associadas à noção de “mulher”. De fato, não se trata de uma dificuldade restrita à forma como sujeitos heterossexuais imaginam as relações homossexuais: é frequente que, entre as próprias pessoas envolvidas nesse tipo de relação, exista a demanda (muitas vezes impensada ou inconsciente) de que as funções simbólicas sejam repartidas como se supõe que deve acontecer num relacionamento heterossexual.

Se a heteronormatividade constitui nossos horizontes imaginativos, parte fundamental da luta contra a violência homofóbica reside na busca de desconstrução do imaginário heteronormativo, isto é, do conjunto de ideias pressupostas como se fossem formas naturais de construção de relacionamentos amorosos, entre quaisquer pessoas, como quer que se definam suas identidades. Quando Julie Maroh escreveu e desenhou o romance gráfico Le bleu est une couleur chaude, um de seus interesses era o de “banalizar a homossexualidade” e de, consequentemente, “chamar a atenção” de quem não duvida dos próprios preconceitos, de quem tem ideias falsas e de quem detesta homossexuais. Por meio da banalização da homossexualidade, o imaginário heteronormativo e os preconceitos, ideias falsas e sentimentos de ódio que o acompanham podem ser colocados em questão.

Azul é a cor mais quente (título original: La vie d’Adèle), a adaptação cinematográfica do romance gráfico de Maroh dirigida por Abdellatif Kechiche, pode ser considerado um prolongamento do esforço de banalização da homossexualidade que a artista francesa reivindica para si, ao pretender contar uma história de amor, como ela mesma reconhece: “Foi isso [a intenção de contar uma história de amor] que interessou Kechiche. Nenhum de nós tinha uma intenção militante.” Ao contarem histórias de amor entre mulheres como histórias de amor quaisquer, Maroh e Kechiche reconhecem o contexto de tensão psicológica, social e cultural que envolve a homossexualidade (como mostra, no caso do filme, a sequência da agressão de Adèle pelas colegas da escola, depois de a verem com Emma no dia anterior) e, ao mesmo tempo, procuram evidenciar seus aspectos banais, cotidianos (no que consiste a maior parte do filme, a meu ver).

Em La vie d’Adèle, a busca de representação do cotidiano de um relacionamento lésbico como um relacionamento qualquer se desdobra na encenação do sexo entre Adèle e Emma, assim como de sua convivência, com densidade de detalhes. A representação de uma história de amor entre mulheres talvez consiga perturbar, parcialmente, por si só, o imaginário heteronormativo. Entretanto, a forma de representação do relacionamento (e, particularmente, do sexo) entre as protagonistas do filme pode ser questionada (e o foi, como mostrarei a seguir) como parte do imaginário heteronormativo, em vez de uma perturbação de suas coordenadas. É por isso que Azul é a cor mais quente está atravessado pela questão da heteronormatividade, que evidencia a política da representação que constitui as imagens do filme.

Principais críticas ao filme

Entre as diversas críticas dirigidas à forma de representação do relacionamento lésbico, em particular do sexo, encontra-se a da própria Julie Maroh, que escreveu: “Me parece claro que foi isso que faltou na tela: lésbicas”. Ela argumenta que, “com exceção de algumas passagens”, o filme encena o “sexo dito lésbico” de forma semelhante a certos filmes pornográficos destinados a homens heterossexuais, em que a encenação do sexo entre duas mulheres é subordinada ao prazer do espectador. Ela descreve as cenas de sexo como

uma ostentação brutal e cirúrgica, demonstrativa e fria do sexo dito lésbico, que parece com o pornô, e que me deixou muito desconfortável. Sobretudo quando, no meio de uma sala de cinema, todo mundo cai na gargalhada. Os/as heteronormativos/as, porque eles/elas não se identificam e acham a cena ridícula. Os homos e outras transidentidades, porque não é credível e porque eles/elas acham igualmente a cena ridícula. E, em meio aos únicos que não se ouve rir, há os eventuais caras que estão ocupados demais com a excitação diante da encarnação de um de seus fantasmas.

A situação que Maroh descreve na sala de cinema pode ser confirmada, com frequência, por qualquer espectador do filme. Os risos que acompanham as cenas de sexo podem se tornar uma fonte de estranhamento maior do que as próprias cenas, sobretudo se consideramos sua polissemia irredutível. Como sempre, é difícil interpretar os sentidos do riso, ou de sua ausência quando os outros riem. Seja como for, para Maroh, o estranhamento do riso é a evidência de um desconforto, que ela reconhece sentir “como lésbica”.

A comparação com o pornô – que reaparece em vários comentários sobre o filme de Kechiche – parece condensar os problemas de aspectos formais significativos de Azul é a cor mais quente, como o trabalho de encenação e de enquadramento. Ao mesmo tempo, a comparação indica um modo de compreensão do que está em jogo na produção do filme, em termos de relações de gênero, de trabalho e, em suma, de poder.

A importância dos close-ups no trabalho de encenação e de enquadramento do filme está associada ao argumento de Marie-Hélène Bourcier (na revista radiofônica queer Bang Bang, da Bélgica), que afirma que a câmera de Kechiche é como a câmera dos pornôs: uma “câmera-pau”, cujo dispositivo se destina à produção de prazer visual e sexual para o espectador homem heterossexual pressuposto. Assim como os close-ups proliferam em torno dos corpos das mulheres, em filmes pornô, para satisfazer o voyeurismo do espectador, os close-ups de Azul é a cor mais quente corresponderiam ao voyeurismo de Kechiche, que se concentraria, sobretudo, sobre a bunda e sobre a boca de Adèle Exarchopoulos, embora se projete, igualmente, sobre os corpos dela e de Léa Seydoux.

Efetivamente, a relação entre o diretor e as duas atrizes tornou-se objeto de polêmica, particularmente depois que, em diferentes entrevistas, Seydoux e, em menor medida, Exarchopoulos comentaram as dificuldades envolvidas nas filmagens, além de afirmarem que não pretendem trabalhar novamente com Kechiche. As exigências do diretor (que repetiu a filmagem de alguns planos até a exaustão, como no caso da sequência do primeiro encontro, que demandou mais de 100 tomadas e dura apenas cerca de 30 segundos) e o desempenho das atrizes (que, para Kechiche, motivou com frequência a repetição das tomadas) resultaram no prolongamento da produção dos 2 meses e meio previstos inicialmente para 5 meses e meio. (As condições de trabalho de toda a equipe do longa foram objeto de denúncia do sindicato competente, na França.)

polêmica decorrente das críticas da equipe técnica e das atrizes ao trabalho de produção funciona como um impulso para a divulgação do filme, como uma jogada de marketing (não planejada, ao que tudo indica), mas também estimula a discussão de questões importantes que atravessam a obra, mas ultrapassam-na. Além de lembrar, muito concretamente, os limites do cinema de autor, uma vez que torna visível o conjunto heterogêneo de trabalhadores que se esconde na assinatura autoral de Abdellatif Kechich, a polêmica (especificamente no que concerne as relações entre o diretor e as atrizes) confere outro sentido à comparação da obra com filmes pornô, pois sugere que, se a pornografia, ao menos em suas formas dominantes, pode ser considerada uma modalidade da exploração do corpo feminino, Azul é a cor mais quente deve ser reconhecido como uma versão dessa modalidade particular de exploração, sobretudo por suas cenas de sexo.

Enquanto Julie Maroh nota a polissemia do riso dos espectadores diante das cenas de sexo, Marie-Hélène Bourcier comenta os sentidos da “câmera-pau” que atribui ao lugar de enunciação orquestrado pelo diretor. Entre os espectadores e o diretor, se Azul é a cor mais quente deve ser interpretado com base em sua comparação com a pornografia dominante, a narrativa do filme não encontra seu desfecho no plano final, em que Adèle caminha para longe da câmera.

Em diversos filmes pornográficos, o sexo entre mulheres é uma função do prazer visual e sexual dos homens. Pode ser que se trate apenas da preparação para a entrada em cena de um ou mais homens, como se o “verdadeiro” sexo se realizasse na penetração heterossexual. Pode ser que, sem a entrada em cena de homens, o desfecho do sexo entre as mulheres ocorra, ainda assim, sob a figura do homem, fora do filme, como espectador pressuposto, ao qual a encenação do sexo é destinada. Em todo caso, há uma redução do sexo entre mulheres à fantasia masculina, da qual o prazer feminino permanece excluído, na qual ele é inimaginável, a não ser como forma de dar mais prazer ao homem (os gemidos calculados, o rosto da mulher que olha, ostensivamente, para a câmera etc.).

Se esse tipo de filme pornográfico, que envolve o sexo entre mulheres e se destina ao prazer do homem, encontra seu desfecho com a entrada em cena da figura masculina, dentro ou fora da obra, a comparação entre Azul é a cor mais quente e a pornografia conduz ao reconhecimento do desfecho do filme bem longe de seus planos, nas imagens de Kechiche, Seydoux e Exarchopoulos, juntos, em festivais e outros contextos, difundidas pela mídia de entretenimento em geral. Nas palavras de Adriana:

Nessas imagens podemos contemplar a presença heterossexista de Kechiche, sempre disposto […] entre as duas atrizes, como se ele fosse aquele ator que surge ao final do pornô lésbico para trazer um pouco de sexo real [após] aqueles longos minutos de “preliminares” entre elas. Em La Vie D’Adèle, o que mais me incomoda é isso: não consigo assistir apenas a um filme lésbico, ou a uma cena de sexo lésbica. A presença de Kechiche é tão forte em seus planos fechados nos glúteos e na boca aberta de Exarchopoulos que, por vezes, o que temos ali é um belo de um ménage à trois ente Seydoux, Kechiche e Exarchopoulos. 

Principais argumentos em defesa do filme

O cerne dos argumentos em defesa de Azul é a cor mais quente consiste na observação de que se trata de uma história de amor. É isso que afirma, antes de tudo, o próprio Abdellatif Kechiche. Julie Maroh reconhece, aliás, que esse é o interesse do diretor, assim como era o dela ao criar o romance gráfico. Como uma história de amor, o filme ultrapassa as cenas de sexo, que participam da narrativa apenas na medida em que evidenciam a intensidade emocional da relação entre Adèle e Emma. Nesse sentido, em primeiro lugar, costuma-se observar que as cenas de sexo duram apenas alguns minutos, dentro de um longa de quase 3 horas. Além disso, os close-ups constituem um recurso estilístico e expressivo recorrente durante toda a obra, o que não permitiria sua identificação ao close-up pornográfico da “câmera-pau”.

A defesa do filme de Kechiche contra as críticas que assumem o lugar de enunciação lésbico e/ou interrogam a heteronormatividade que orientaria a obra recusa, repetidamente, a interpretação da narrativa como uma história de amor lésbica. Essa recusa está associada ao não reconhecimento do problema da representação, no filme, tal como apontado de forma radical pelas críticas que tentei identificar acima. Assim, ao se enfatizar que se trata de uma história de amo qualquer, cuja representação não envolveria problemas relacionados à identidade de gênero e da sexualidade das protagonistas, torna-se possível atribuir à narrativa de Azul é a cor mais quente a evidência da universalidade. É o que argumenta, por exemplo, Pablo Villaça, que escreve, no início e no final de sua crítica, respectivamente:

enxergar o filme como um “romance lésbico” é incorrer no erro dos homofóbicos, que tendem a enxergar gays e lésbicas como seres atípicos e estranhos, em vez de perceber que a história aqui contada gira em torno de pessoas que se definem por seus sentimentos, não por sua orientação sexual. […]

[…] afirmo que encarar Azul é a Cor Mais Quente como “uma história de lésbicas” é reduzir suas personagens às suas orientações sexuais em vez de perceber que o que vivem é universal e reflete a humanidade falha, atrapalhada e comovente de todos nós.

A reivindicação de universalidade permite à crítica de cinema (que reproduz, em geral, a apreciação de Villaça, mesmo quando não o declara explicitamente) evitar as questões sugeridas pelas críticas ao filme que assumem a perspectiva da diferença. Nesse contexto, os close-ups, que atravessam toda a obra, não podem ser entendidos como planos criados por e para uma “câmera-pau”, que para Marie-Hélène Bourcier e outras críticas não é nada sutil em sua representação dos corpos femininos. Em vez da violência pornográfica da “câmera-pau”, os close-ups seriam significativos da sensibilidade do diretor e da sutileza de sua narração, que busca ancoragem nos detalhes, nos rostos, nos humores (no duplo sentido da palavra: estados de espírito e líquidos corporais).

Com base na vontade de universalidade, é possível interpretar Azul é a cor mais quente como uma espécie de “romance existencialista” que encena o “processo de formação do ser, tal como proferido por Sartre”; como um “retrato do romance contemporâneo”, em que cada um de nós pode encontrar vislumbres de experiências pessoais, como reflexos entrevistos no espelho; como uma história de passagem da adolescência para a idade adulta e uma jornada de descoberta.

A contraposição entre interpretações de Azul é a cor mais quente tende a assumir a configuração de um embate entre reivindicações de universalidade e deslocamentos de perspectiva a partir da diferença (especificamente da identificação como lésbica, mas não somente nessa condição). Entender esse embate nos termos limitados da oposição entre universalismo e relativismo equivale a renunciar à compreensão efetiva de como o próprio filme inscreve a tensão que o constitui em sua tecelagem narrativa. Tanto os problemas de representação apontados pelas interpretações feministas e lésbicas quanto a pretensão de universalidade identificada por diversos apreciadores da obra devem ser reconhecidos como temas que o filme aborda, mesmo que indiretamente, em sua trama complexa, em sua duração intensa. Será preciso, portanto, analisar como Azul é a cor mais quente encena, comenta e pensa, ao mesmo tempo e de forma articulada, a universalidade de sua história de amor e a diferença radical que a torna inequivocamente singular.