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Eduardo Coutinho, 7 de outubro: o narrador e sua figura

Fábio Monteiro escreve sobre Eduardo Coutinho, 7 de outubro, em que Carlos Nader inverte o jogo que caracteriza o estilo documentário de Coutinho e o transforma em comentador de seus filmes.

Impropérios, ultrajes, descompostura e outras categorias de baixo calão que nunca tiveram chance no universo diegético do documentarismo. É em meio a palavras desse teor que Coutinho se aproxima e toma seu lugar no cenário preparado por Carlos Nader para realizar a entrevista. “Trata-se de inverter o jogo”, eis o contrato de Eduardo Coutinho, 7 de outubro.

PRISÃO. Nader coordena a própria equipe de Coutinho e opta por uma estratégia recorrente no jogo da equipe: tornar evidente a “prisão” escolhida para o filme. É a prisão que garante a total liberdade para o realizador. Em outras palavras, trata-se de demonstrar desde o começo do filme o dispositivo preparado para a realização do processo de filmagem. Dessa forma, o cineasta consegue desenvolver suas conversas de modo firme e compromissado, “sempre olhando no olho do interlocutor”. Nader opta pelo tête-à-tête e contrapõe-se à cadeira de Coutinho munido de um laptop carregado com várias sequências de seus filmes. Duas câmeras os acompanham de forma a registrar os corpos em ação, pois é o corpo que fala, ele é a origem de todas as coisas, afirma Coutinho.

RABUGICE. Os primeiros momentos do filme demonstram aquilo que já conhecíamos através de entrevistas e depoimentos escritos de seus colegas de trabalho: um sujeito velho e rabugento que reclama constantemente da saúde. Um fumante inveterado que seria capaz de reavivar diferenças e choques de opiniões após anos, conforme conta Berg em livro organizado por Ohata: Coutinho “ficou puto” quando ela e a assessora de edição apareceram no estúdio com máscaras de pedreiro a fim de evitar o cheiro do fumo. Apesar desse pessimismo diante da vida e logo no começo do filme, Coutinho assume a conversa zombando daqueles que afirmam que o cinema deve ir com profundidade aos temas humanos: foi com Santo Forte que ele passou a depurar sua linguagem em busca daquilo que é “superficial, raro, precário”. Tratava-se de realizar um filme não sobre os outros, mas com os outros, como argumenta Consuelo Lins em O documentário de Eduardo Coutinho. Daí a relevância da edição com cortes contínuos, pois a única coisa que passa a interessar é o presente da filmagem.

DISPOSITIVOS. A conversa segue através de uma boa tática: Nader exibe algumas cenas dos filmes de Coutinho para desencadear os temas. Vale dizer que esse mesmo dispositivo também foi adotado por Silvio Da-Rin em Hércules 56, com resultados bem interessantes, pois trata-se de um recurso que, além de estimular a memória pessoal dos interlocutores, também ajuda a desdobrar uma série de reflexões acerca dos momentos das filmagens e da natureza fílmica da composição em questão. Tanto é assim que o tema em questão passa a ser o erotismo em jogo na filmagem. A proximidade dos corpos, a intensa atenção, a força da experiência realçada pelos cabelos brancos: basta esquecer-se da câmera e todos esses elementos acentuam a exclusividade do momento da filmagem. O fundamental é, sobretudo, o exercício de confiança mútua entre o realizador e os seus interlocutores. Ele descreve as distâncias entre ele e algumas personagens, aponta o fato de que, algumas vezes, ele dividiu o quadro com elas e chegou a passar a entrevista com os corpos em contato. Os corpos e os gestos desencadeiam as conversas e os ritmos das narrativas: “Sou um bom provocador, não espero nada”.

EXPERIÊNCIA. Por duas ou três vezes, Coutinho recorre a Walter Benjamim: “ele deve ter escrito sobre isso, esse troço de palavra adâmica.” Nader e Coutinho debatem O Fim e o princípio, filme resultado de uma viagem pelo sertão nordestino. Por ali, ainda é possível encontrar a afinidade perdida entre palavra e objeto, um momento no qual vivência e experiência são equivalentes. Um reino coetâneo ao contemporâneo, porém preservado da barbárie moderna em que a linguagem é mobilizada em termos instrumentais. O filme evidencia a coexistência dessas temporalidades. A conversa avança e toma novos rumos sobre a superfície da linguagem, pois, em Peões, o silêncio (e, quem sabe, o inaudito) é posto à prova. Coutinho afirma que sabia do sofrimento que o “peão” estava vivendo diante daqueles vinte e três segundos de silêncio, mas mesmo assim aguardava uma saída dele. Um momento agambeniano: é preciso demonstrar as lacunas da tessitura do testemunho. Àquela pobreza que seria o indizível é atribuída dignidade pelo registro fílmico: Coutinho compartilha do silêncio e sustenta a escuta para ouvir a questão final “o senhor já foi peão?”.

VIDA E OBRA. O filme vem se somar a um significativo acervo de recentes entrevistas de Coutinho que estão disponíveis na internet. A sua novidade é a linguagem documental e a disposição de Coutinho de falar sobre si mesmo. Assim, o que nos parece notável é o lugar de Coutinho como narrador, uma condição na qual ele demonstra saber que as palavras fundam a vida, e que o exercício de escuta é capaz de renovar a humanidade. Porém, mesmo como narrador, ele só é capaz de fazer isso através de suas personagens, “afinal a vida não tem nada a ver com a obra. Eu faço o que faço porque é só neste momento que eu vivo essas coisas.”

Fábio é Professor de Humanas em Pré-Vestibulares e Mestrando em História Social pela PUC-SP. Durante as férias letivas, ele é documentarista independente formado pela EICTV.

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