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O Lapis da natureza

1. Entre 1844 e 1846, William Henry Fox Talbot desdobrou, nos seis volumes de The Pencil of Nature, o que descreveu, nas observações introdutórias ao primeiro volume, como “a primeira tentativa de publicar uma série de chapas ou imagens inteiramente executadas por meio da nova técnica do Desenho Fotogênico, sem qualquer ajuda do lápis do artista”. Como sugere o título da obra, é “o lápis da natureza” que produz as imagens que ela nos apresenta, como a chapa IV, identificada como “Artigos de Vidro” (Articles of Glass).

Chapa IV, Articles of Glass, de The Pencil of Nature, de William Henry Fox Talbot (1844).

Talvez seja preciso reconhecer que, junto com seus contemporâneos que encontravam na fotografia apenas a ação da luz e a mediação de meios ópticos e químicos, Fox Talbot delirava, enxergando na fotografia “a mera ação da Luz sobre papel sensível”. Nenhuma fotografia jamais foi apenas impressão luminosa, na medida em que é também trabalho e fantasmagoria, operação técnica de inscrição de rastros, condensação e dispêndio de energia. Se é o lápis da natureza que produz a imagem, seus movimentos não são apenas o fundamento de uma aparição transparente do mundo no suporte fotossensível. Há no lápis da natureza a opacidade de um mistério.

2. Entre 1963 e 1966, James Whitney utilizou um sistema analógico e mecânico de automação computacional, desenvolvido por seu irmão, John, com base em tecnologias de guerra, para elaborar uma sucessão de mandalas móveis, apresentadas em seu Lapis (1966) aos sons da cítara de Ravi Shankar. O título da obra é uma referência à heterogênea tradição mística e alquímica que, em diferentes contextos culturais, aspira à chamada “pedra filosofal” – em latim: Lapis Philosophorum. Se, quando Gene Youngblood comenta Lapis em seu Expanded Cinema (1970), ele fala em “pedra filosofal cibernética” (“Cybernetic Philosopher’s Stone“), é por reconhecer que a obra de James Whitney articula os mundos apenas aparentemente desconexos da ciência e da mística. Referindo-se inicialmente às primeiras imagens do filme, Youngblood descreve os procedimentos fundamentais que o atravessam:

Whitney pintou à mão chapas com campos de padrões de pontos que começavam dispersos e reuniam-se em maior concentração em direção ao centro. Essas chapas foram colocadas em mesas de rotação embaixo de uma câmera montada verticalmente. As mesas rodavam em seus próprios eixos, enquanto giravam em torno de outro eixo, e ao mesmo tempo se moviam horizontalmente através do espaço alcançado pela câmera.1

(Gene Youngblood, Expanded Cinema, 1970, p. 227)

A intervenção manual de Whitney é, portanto, crucial, assim como a operação automatizada do dispositivo elaborado colaborativamente por James e John. Os pontos pintados à mão se transformam fotograficamente em variações de impressões luminosas, cujo movimento é operado pelo programa do dispositivo de base cibernética, criando um jogo de correspondências e disjunções, de aproximações e afastamentos, entre a música visual das mandalas e a sonoridade luminescente da cítara.

Na transmutação da matéria a que aspira James Whitney, a alquimia está no trabalho minucioso de animação da imagem, que deve ser entendido tanto como um trabalho de inscrição e mobilização material, quanto como o que poderíamos denominar um sopro de alma (anima) – ignorando provisoriamente que não há qualquer distinção rigorosa que se possa estabelecer entre a aspiração à eternidade de uma alma e a necessária brevidade de um sopro. Em Lapis, o cinema emerge de um processo de decantação, revelando-se como imagem animada, isto é, soprada, isto é, também, frágil e fugaz.

3. Experimentar o Lapis de James Whitney por meio de um vídeo no Youtube impede que se faça justiça à beleza da obra, de que podemos ter, no entanto, um vislumbre intenso. Com o fluxo de pixels do vídeo digital, não estamos diante de uma digitalização da obra, mas de uma série de camadas de mediação tecnológica e midiática: assistimos à versão digital do que parece ser uma gravação em formato VHS, possivelmente de uma transmissão televisiva da obra (segundo o breve letreiro inicial do vídeo, onde se lê “Göttersturm TV-Rip”, e também de acordo com um dos comentários).

Diálogo nos comentários do vídeo Lapis, no Youtube

No vídeo que está disponível no Youtube, as camadas de mediação tecnológica e midiática se acumulam como véus sobre nossa experiência da obra, mas é possível que isso seja uma outra maneira de fazer justiça a ela e à sua estrutura de véus. Em Lapis, afinal, é uma multiplicidade de camadas imagéticas determina os movimentos das mandalas que, como afirma Nicole Brenez em suas reflexões sobre o “estado do cinema” em 2021, se assemelham às imagens de buracos negros de que dispomos atualmente.

A cosmética das mandalas de Whitney resguarda, talvez, um sentido cósmico que atravessa suas formas – e que aproxima seus movimentos do denso mistério dos buracos negros. Se Fox Talbot delirava ter encontrado o “lápis da natureza” quando descobriu ou inventou um dos primeiros processos fotográficos da história, talvez James Whitney e seu irmão tenham encontrado ou delirado um vislumbre do Lapis da natureza, isto é, da pedra incerta que, arredia a qualquer aspiração à transparência, só pode aparecer para nós, em flor e delírio, ao desaparecer. O Lapis da natureza nunca se re-vela, sempre se re-vela, apenas se re-vela.


  1. Tradução minha. No original: Whitney hand-painted glass plates with fields of dot-patterns that began sparsely and collected into high concentration toward the center. These were placed on rotating tables beneath a vertically-mounted camera. The tables spun on their own axes while simultaneously revolving around another axis, and at the same time moving horizontally across camera range.