Categorias
Entre-imagens

Desterro, desejo, delírio

Este texto foi publicado originalmente no catálogo da mostra Grandes Clássicos do Cinema Africano, que ocorreu de 14 a 16 de novembro de 2017, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.

Reivindicar o cinema talvez seja reivindicar, também, algum direito ao delírio. Na história dos cinemas africanos, reivindicar o cinema é reiterar o gesto fundamental – e fundamentalmente incompleto – de inversão do olhar (RIBEIRO, 2016), tal como esse gesto se desdobra pelo menos desde África sobre o Sena (Afrique sur Seine, 1955). A condição de possibilidade histórica dessa inversão, no filme dirigido por Mamadou Sarr e Paulin Vieyra, em 1955, é o desterro que leva a devolver o olhar e torna possível imaginar o mundo, ultrapassando a consciência limitada que o narrador do filme atribui ao tempo da infância. Na sequência inicial, sua voz projeta uma espécie de delírio nostálgico sobre imagens oníricas da terra africana:

“Jovens, despreocupados, ignorando o mundo que nos rodeava. Ignorávamos as regiões que limitavam nosso recanto na África. Ignorávamos que podiam existir outras regiões onde crianças negras, crianças amarelas, crianças brancas brincavam, se debatiam em outros rios.”1

Para gritar pela independência “diante do sol e dos antepassados”2, é preciso reconhecer e assumir a condição de desterro. “Foi preciso crescer, deixar o país por Paris, capital do mundo e da África negra”3, diz o narrador, em francês, articulando o duplo distanciamento dessa condição, que se inscreve no tempo, em relação à infância, e no espaço, em relação à terra – assim como na língua que se fala, na medida em que “falar é existir absolutamente para o outro”, como escreve Frantz Fanon (2008, p. 33).4 Ao mesmo tempo em que a voz do narrador introduz a experiência do exílio em Paris como tema privilegiado de suas reflexões, África sobre o Sena opera a inscrição estética do desterro, por meio da montagem que entrelaça a voz a imagens de Paris e a uma trilha musical africana.

A música, que codifica a memória da infância e dos antepassados e a ideia de Paris como capital da África negra, desloca os sentidos das paisagens filmadas e articula, dessa forma, uma figura da comunidade no desterro, formada pelos africanos que deixaram sua terra e foram para a metrópole. Paris aparece como a capital da África negra, assim como o francês emerge, nesse e em outros filmes, como língua que atravessa o gesto de inversão do olhar. A experiência do desterro, que é condição de possibilidade da enunciação fílmica de África sobre o Sena, torna-se uma experiência estética de disjunção entre som e imagem, assim como uma experiência dos estrangeirismos da língua que enuncia o discurso oral durante todo o filme.

Paris é bonita (Paris c’est joli, 1974), realizado por Inoussa Ousseini Sountalma, também aborda a condição de desterro, explorando suas possibilidades narrativas por meio da mediação de um protagonista que chega a Paris dentro de um comboio de caminhões que transportavam imigrantes africanos em jaulas, segundo a notícia televisiva que abre o filme. Descobertos pela polícia, segundo o apresentador do jornal, “os traficantes e seus clientes fugiram e se espalharam pelo interior”.5

O itinerário do protagonista pelas paisagens campestres e sua chegada a Paris permitem abordar a condição de desterro em diferentes contextos. Em seu trajeto a pé, vemos a solidão do imigrante. Na atitude do primeiro motorista que lhe oferece carona, evidencia-se a hipersexualização do corpo do homem negro, que caracteriza o imaginário racista e o que se poderia descrever como sua obsessão genital (FANON, 2008, sobretudo cap. 3, intitulado “O homem de cor e a branca”). No diálogo com o segundo motorista, encontramos um indício da história da participação negra africana em guerras do Estado colonial francês, como a Guerra da Indochina (1945-1954).

Finalmente, depois de sua chegada a um bairro onde encontra outros imigrantes, o protagonista é levado a uma casa de prostituição, tem a bagagem roubada e termina sua trajetória enviando, com um cartão postal, uma mensagem endereçada à mulher que deixou em sua terra, cujo texto sua voz lê, em off, enquanto vemos imagens de sua caminhada com o cartão em mãos. O cartão contém uma imagem da Torre Eiffel em um dia ensolarado, que contrasta com o aspecto acinzentado dos dias nublados em que transcorre a ação do filme. A imagem do cartão é, ademais, a mesma que aparece nos créditos iniciais e finais. A voz em off do protagonista diz que ele fez uma boa viagem, sem problemas, que está tudo bem, que as pessoas são gentis e que “Paris é bonita”, conforme o título do filme. “Repita isso para os nossos filhos”, conclui ele.6

A ironia de Paris é bonita está relacionada à idealização da metrópole e da experiência do exílio, e um de seus possíveis contrapontos está na interrogação das idealizações do retorno à terra africana, que Ababacar Samb-Makharam propõe em E não havia mais neve… (Et la neige n’était plus…, 1965). Aqui, o movimento de inversão do olhar inaugurado por África sobre o Sena se desdobra num retorno inquieto às origens e a “tudo aquilo que você idealizou durante seu exílio voluntário”7, como diz a voz do narrador do filme, dirigindo-se a si mesmo e àqueles que compartilham o desterro em meio ao retorno à África.

Nos três filmes, a necessidade de “tomar posição diante da linguagem” (FANON, 2008, p. 34) se resolve com a adoção do francês. Se “[f]alar uma língua é assumir um mundo, uma cultura” (FANON, 2008, p. 50), falar a língua do colonizador equivale a buscar seu reconhecimento como um semelhante, o que implica uma duplicidade racializada: “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será (FANON, 2008, p. 34).8 Reivindicar o cinema de uma perspectiva africana parece consistir, assim, em reivindicar o reconhecimento do colonizador, por meio da inversão de seu olhar e da adoção de sua língua. Os filmes supõem espectadores brancos ocidentais, provavelmente franceses, como seu público ideal, e suas potências, assim como seus limites, estão relacionados a essa disjunção característica da condição de desterro, que implica afirmar e negar, ao mesmo tempo, a perspectiva africana como alteridade.

“O que você se tornou? Você mudou?”9, pergunta a voz do protagonista de E não havia mais neve…, em francês, enquanto uma sequência de planos filmados em travellings com enquadramento diagonal revela algumas paisagens de Dakar como figura da terra africana. A estrangeiridade do olhar se evidencia pelo recurso ao travelling, que parece constituir uma das figuras estilísticas privilegiadas do olhar distanciado no cinema: o travelling como o olhar de um viajante, um olhar em viagem, que se distancia daquilo que vê. A música instrumental marcadamente ocidental diante das paisagens africanas ressalta a estrangeiridade codificada pelo travelling e inverte o contraponto de África sobre o Sena, no qual a música africana soava sobre paisagens europeias.

Em E não havia mais neve… a estrangeiridade do travelling e do contraponto musical é uma estrangeiridade inquieta, ansiosa e instável, na medida em que resguarda alguma memória de pertencimento e duvida da possibilidade de reintegração: “Você está voltando à sua infância, com as mãos cheias para nela permanecer? Ou você é um turista em busca de exotismo, que passa e volta a partir?”10 – estas e outras perguntas se encadeiam sobre imagens da chegada do exilado à casa de sua família. O desterro do “exílio voluntário” se converte no desterro como forma de relação com a terra, e o pertencimento perdido, a que se aspira novamente e se delira algum retorno, torna-se pertensimento, revelando uma nódoa de impossibilidade, uma irredutível tensão, cujo silêncio (o s que erra no interior da palavra pertensimento) equivale ao do sujeito que não fala mais uma língua:

“E você, sim, você mesmo, não confunde progresso material com abandono das tradições? O que você propõe de são no lugar desse abandono? Você não está entre os que não sabem mais, os que não falam mais sua língua nem a do outro quando estão com raiva ou incomodados?”11

O sujeito do retorno às origens é perturbado pela incerteza em relação à terra a que retorna e ao desterro do exílio europeu e de suas promessas materiais: “Por que voltar para cá e deixar o bem-estar material? O que você deseja?”12, pergunta o narrador, mais adiante, após o filme ter apresentado ao espectador uma série de imagens e reflexões sobre os africanos que retornaram e sua tendência a tentar imitar a Europa, talvez se tornando “brancos de pele negra”13: “Não vivem eles num mundo alterado e artificial, onde só se preocupam com prazeres efêmeros e dispendiosos, macaqueando a vida dos brancos?”.14 A questão da imitação se inscreve, no discurso oral e nas imagens, como uma questão de identificação racial, que Frantz Fanon interrogou no título de seu livro Pele negra, máscaras brancas (2008): um “branco de pele negra” equivale a um sujeito cuja pele negra está coberta por máscaras brancas, por suas roupas, por seus comportamentos, por seus desejos – e, talvez, pela língua que fala.

De fato, a palavra “macaqueando” (singeant, em francês) condensa a memória do racismo que assombra a condição de desterro. Se o verbo singer se refere a um ato de imitar sem conseguir se assemelhar ao objeto da imitação, recordando, por meio de sua relação com o substantivo singe, a ideia de uma imitação imperfeita do homem pelo macaco, o uso do verbo em E não havia mais neve… é inseparável da associação racista entre negros e macacos e da atribuição, aos negros, de uma condição de inferioridade, de sub-humanidade e mesmo de exterioridade em relação à comunidade humana, definida como branca pelo discurso eurocêntrico e racista (SHOHAT; STAM, 2006).

Assim como África sobre o Sena e Paris é bonita, o filme de Samb-Makharam inscreve a poética do desterro, que é uma de suas condições de possibilidade, no interior de uma política do desejo, na qual a articulação de gênero e sexualidade opera como matriz de sentidos do processo histórico do colonialismo, seja como seu substrato denotativo (identificações de gênero e sexualidade como mecanismos concretos de dominação e de resistência), seja como sua alegoria abstrata (gênero e sexualidade como metáforas da relação colonial e do desejo descolonial).15 Em África sobre o Sena, a solidão do desterro em Paris abre também a possibilidade de encontro da África no Sena e, portanto, de uma “fraternidade nascente”16, que se reconhece, em parte, nos ideais civilizacionais universalistas. Esses ideais, associados à língua francesa, são deslocados, contudo, pela reivindicação de seus termos por uma posição de alteridade africana, através da inversão do olhar. O desejo de reconhecimento como parte da comunidade universal da humanidade e os limites que o desterro impõe à sua realização compõem uma espécie de drama incipiente, que se expressa, visualmente, em relação às mulheres, com destaque às mulheres brancas. O desejo sexual e amoroso aparece como veículo de um desejo de dignidade, como escreve Fanon (2008, p. 69):

“Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem este desejo repentino de ser branco.
Não quero ser reconhecido como negro, e sim como branco.
Ora – e nisto há um reconhecimento que Hegel não descreveu – quem pode proporcioná-lo, senão a branca? Amando-me ela me prova que sou digno de um amor branco. Sou amado como um branco.
Sou um branco.
Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz à plenitude…
Esposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca.
Nestes seios brancos que minhas mãos onipresentes acariciam, é da civilização branca, da dignidade branca que me aproprio.”

O drama do reconhecimento, entre sexo, amor e aspiração à universalidade, desdobra-se, em seguida, em imagens de convívio, comensalidade e amizade, que prenunciam, na trama fílmica, o delírio fundamental de uma comunidade descolonizada. Em Paris é bonita, a ilusão sobre a vida na metrópole francesa é ironizada como um delírio dissociado da realidade, enquanto o desterro é uma experiência de solidão, violência, perda e perturbação. A política do desejo emerge sob a forma da hipersexualização do corpo negro, que é um tema explícito do diálogo com um dos motoristas que dá carona ao protagonista, no início do filme, e um tema implícito da sequência de sua visita à casa de prostituição. A hipersexualização se revela, no filme, como um interesse do motorista em ver o “sexo” do protagonista, supondo que, conforme o imaginário racista, como escreve Fanon (2008, p. 138), “o negro tem uma potência sexual alucinante. É este o termo: é preciso que esta potência seja alucinante”. Na sequência que se passa na casa de prostituição, o que está em jogo é a revelação do desconforto do protagonista em relação à injunção da “potência sexual alucinante” e, também, em relação à “preocupação mais constante daqueles que chegam na França”, também segundo Fanon (2008, p. 75), que “é dormir com uma mulher branca”, uma vez que ele apenas paga pelos serviços de uma prostituta, sem chegar a consumar qualquer ato sexual.

Em E não havia mais neve…, por sua vez, o retorno inquieto às origens e a interrogação do desejo que o atravessa conduzem a um desfecho que revela o sentido delirante da comunidade descolonizada, por meio da introdução de uma voz feminina, que também se expressa em francês e que é o objeto de uma promessa impossível: a fabricação de “neve negra”. “É a partir daqui que você voltará a encontrar seu equilíbrio e o sentido de sua vida”17, diz o narrador na frase que antecede o diálogo entre ele e uma mulher, que acompanhamos no final do filme, por meio de uma montagem que faz soar a voz masculina sobre o plano da mulher e a voz feminina sobre o plano do homem. Inverte-se a convenção mais usual de uso do esquema campo-contracampo, na qual se faz corresponder voz e sujeito representado na imagem. A mulher pergunta:

– Me diga, como são os países que você visitou?
– Há cidades, aldeias, florestas, como aqui. Durante meses, faz frio e cai neve.
– A neve? Nunca vi… Ela é branca? Por que não existe neve negra?
– Porque não existe. Mas se você realmente quiser, fabricarei um pouco para você.18

A reivindicação do cinema equivale, em África sobre o Sena, à reivindicação de pertencimento à comunidade universal da humanidade como comunidade descolonizada. Paris é bonita revela o caráter delirante dessa reivindicação, enquanto E não havia mais neve… reivindica o direito ao delírio da “neve negra”. Demarca-se, ao mesmo tempo, a impossibilidade do pertencimento pleno – tanto em relação à terra africana quanto em relação à comunidade universal da humanidade, tanto em relação às línguas africanas quanto em relação à língua francesa – e a necessidade de reconhecimento das formas de pertensimento que constituem a condição de desterro e a convertem na ocasião de um delírio inventivo. A “neve negra” é a metáfora de uma comunidade inexistente, cuja promessa as independências insinuam e que é preciso fabricar. O filme dramatiza esse horizonte inventivo por meio do gênero, na relação entre o narrador e a mulher com quem ele dialoga na sequência final, como se o encontro entre os dois indicasse alguma possibilidade de sentido, para ele e para sua vida.

É em relação à promessa das independências, ao fantasma do fracasso da descolonização e à persistência das fantasias do imaginário racista que se deve compreender Os príncipes negros de St. Germain-des-Près (Les princes noirs de St. Germain-des-Près, 1975), de Ben Diogaye Bèye, e sua abordagem do desterro de alguns jovens africanos em Paris. O filme entrelaça registros da multidão nas ruas da metrópole como lugar de uma experiência de anonimato, vislumbres de africanos nas paisagens de Paris e uma trama narrativa mais específica, protagonizada por um jovem negro que, juntamente com outros, busca construir uma persona, a partir do anonimato metropolitano, por meio da articulação de elementos do imaginário colonial e racista sobre a África: eles buscam se relacionar com mulheres (sobretudo brancas, mas também uma asiática e, de modo infrutífero, uma negra americana) por meio da incorporação de traços de exotismo que operam como máscaras. De fato, se um deles, ao conversar ao telefone, refere-se ao uso que faz de uma máscara para se apresentar como artista a uma mulher branca e loira, encenando uma ancestralidade exótica, como a aplicação de um “golpe de máscara”19, a densidade da metáfora das máscaras extrapola o sentido literal do termo e o aspecto referencial de sua aparição no filme, desdobrando-se num sentido metafórico que recorda e desdobra os termos do título do livro de Fanon: no filme de Bèye, a pele negra se associa a uma série de máscaras negras fantasiadas pelos brancos, e os jovens negros procuram se afirmar, de alguma forma, por meio de uma apropriação das fantasias a que tais máscaras correspondem.

A montagem do filme ressalta o aspecto artificial da incorporação delirante das fantasias e dos fantasmas do exotismo característico do imaginário colonial e racista, que é mobilizado pelos jovens, no filme, para seduzir as mulheres, conseguindo sexo e dinheiro ao se fazerem passar por “príncipes negros”, como diz o título. Na montagem da sequência inicial, por exemplo, alternam-se planos de um dos jovens e imagens da paisagem urbana. O jovem caminha pelas ruas de Paris com um guarda-chuva de listras azuis e amarelas. A trilha musical codifica, num primeiro momento, um sentido tradicional de africanidade, associado, sobretudo, a sons percussivos. Em seguida, articula, por meio da estética musical do rock, um sentido satírico de artificialidade, que reverbera sobre os signos da música tradicional e é ressaltado pelo encadeamento, na montagem visual, das vitrines de diferentes lojas, exibindo roupas. Mais adiante, ao explorar mais diretamente a narrativa das relações entre os jovens e diferentes mulheres, o filme inscreve visual e dramaticamente a fantasia de apropriação da dignidade branca que Fanon (2008, p. 69) identifica no reconhecimento dividido a que aspira o homem negro: seu reconhecimento como branco, proporcionado pela mulher branca. O letreiro final explicita o tema central da narrativa e da montagem visual e sonora do filme: “Quinze anos após as independências… os mesmos fantasmas”.20 Apesar da reivindicação do delírio que define o impulso persistente dos cinemas africanos, o delírio cinematográfico permanece assombrado pelas mesmas fantasias e fantasmas.

Se reivindicar o cinema equivale, em alguma medida, a reivindicar um direito ao delírio, é porque o delírio cinematográfico é um campo de disputa, e seu imaginário, uma reserva de sentidos que produz efeitos concretos na experiência histórica de desterro e nos desejos que a atravessam. África sobre o Sena, E não havia mais neve…, Paris é bonita e Os príncipes negros de St. Germain-des-Près representam a persistência do gesto inaugural de inversão do olhar, que funda, de modo geral, os cinemas africanos, sem dar a eles, contudo, um fundamento completo e absoluto. O fundamento contingente da inversão do olhar opera deslocamentos, nos quatro filmes e em outros que se poderia aproximar deles, na economia dos olhares que se estabelece em torno do nome África, interrogando aspectos coloniais, racistas, eurocêntricos e universalistas da história do delírio cinematográfico. África sobre o Sena, em 1955, reivindica o direito de olhar o mundo e a África a partir do desterro diaspórico, delirando a terra africana no passado da infância e a promessa de uma comunidade descolonizada no futuro. Dez anos depois, E não havia mais neve… reivindica o direito de imaginar o mundo a partir de um retorno às origens que, como todo retorno, é incapaz de apagar a diferença imposta pela partida e pela distância, exigindo que a promessa das independências seja convertida num trabalho de fabricação do delírio da comunidade descolonizada. Na década de 1970, finalmente, Paris é bonita e Os príncipes negros de St. Germain-des-Près revelam a incompletude desse delírio descolonial, que é constitutivo dos cinemas africanos, e a necessidade persistente de reivindicar o direito de olhar e de narrar a partir de perspectivas de alteridade, que busquem deslocar os termos e as modalidades dominantes de sedimentação do imaginário cinematográfico.

Referências

BADOE, Yaba; MAMA, Amina; MEKURIA, Salem (eds.). African Feminist Engagements with Film. Feminist Africa, 16, 2012, p. 1-162.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

HARROW, Kenneth W. (ed.). African cinema: postcolonial and feminist readings. Trenton, NJ: Africa World Press, 1999.

RIBEIRO, Marcelo R. S. Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do olhar, retorno às origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos. Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 5, n. 2, 2016, p. 1-26.

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Tradução Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

YOUNG, Robert. Desejo colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.


  1. Reproduzo aqui as legendas presentes na cópia do filme exibida na Mostra, apresentando a seguir uma transcrição do áudio em francês: “Jeunes, insoucieux, ignorant le monde qui nous entourait. Nous ignorions les régions qui limitaient notre petit coin d’Afrique. Nous ignorions qui il pourrait exister d’autres régions, où des petits noirs, des petits jaunes, des petits blancs jouaient, se débattaient dans d’autres fleuves”. 

  2. A frase inicial da narração de África sobre o Sena é traduzida da seguinte forma pelas legendas da cópia exibida na Mostra: “Diante do sol e dos antepassados, gritamos pela independência”. Transcrição em francês: “À la face du soleil et des aïeux nous crions alors notre indépendance”. 

  3. ranscrição em francês: “Il a fallu grandir, quitter le pays pour Paris, capitale du monde, capitale de l’Afrique noire”. 

  4. Agradeço a Tiago Castro Gomes por chamar minha atenção para a necessidade de considerar a questão da língua falada nos filmes analisados neste texto, assim como pela lembrança da discussão de Fanon a esse respeito (à qual retornarei mais adiante). De fato, a escolha do francês nos quatro filmes que comento aqui indica a ambivalência constitutiva de sua forma de reivindicar o cinema. 

  5. Reproduzo aqui as legendas presentes na cópia do filme, apresentando a seguir uma transcrição do áudio em francês: “les trafiquants et leurs clients se sont enfuis et se trouvent maintenant disseminés dans toutes nos campagnes”. 

  6. Transcrição em francês: “Répète-le à nos enfants.” 

  7. No caso desse filme, as citações foram traduzidas por mim. Transcrição em francês: “tout ce que tu as idéalisé pendant ton exile volontaire”. 

  8. É o próprio Fanon quem enfatiza os limites de suas conclusões, que, como ele escreve (2008, p. 40): “só são rigorosamente válidas para as Antilhas francesas; não ignoramos entretanto que os mesmos comportamentos podem ser encontrados em meio a toda raça que foi colonizada”. 

  9. Transcrição em francês: “Qu’es-tu devenu ? As-tu changé ?”. 

  10. Transcrição em francês: “Reviens-tu à ton enfance, les mains pleines pour y demeurer ? Ou est-tu un touriste en mal d’exotisme, qui passe et repart ?” 

  11. Transcrição em francês: “Et toi, oui, tou-même, ne confond-tu pas progrès matériel et abandon des traditions ? Que proposerais-tu de sain à la place de cet abandon ? N’es-tu-pas parmi ceux qui ne savent plus, ceux qui ne parlent plus leur langue ni celle de l’autre quand ils sont en colère ou dans l’embarras ?” 

  12. Transcrição em francês: “Pour quoi revenir ici et délaisser le bien-être matériel ? Que désire-tu ?”. 

  13. Transcrição em francês: “blancs à peau noire”. 

  14. Transcrição em francês: “Ne vivent-ils pas dans un monde frelaté et artificiel, où l’on ne se préoccupe que des plaisirs éphémères et coûteux, en singeant la vie des blancs ?”. 

  15. Estou pensando em uma possível extrapolação de discussões propostas por Robert Young (2005). A perspectiva que define a reivindicação do cinema e do direito ao delírio, em meio ao desejo descolonial, é, nos filmes discutidos neste texto, uma perspectiva africana masculina, e seria preciso interrogar o que a singulariza e a diferencia de outras perspectivas possíveis, especialmente a perspectiva africana feminina que, em sua multiplicidade, permanece ausente nos quatro filmes, sendo condensada como objeto do desejo masculino, que a recusa ou a delira como uma afirmação de sua própria potência. De fato, seria preciso mapear a diversidade de formas de atuação de mulheres nos cinemas africanos, para compreender o que define, singulariza e diferencia essa perspectiva feminina, tal como ela se realizou historicamente, mas isso escapa aos horizontes desse texto. A esse respeito, ver os artigos reunidos na parte quatro do volume editado por Kenneth W. Harrow (1999), dedicada a “Feminist Approaches to African Cinema“, assim como o número do periódico Feminist Africa dedicado ao tema “African Feminist Engagements with Film” (BADOE; MAMA; MEKURIA, 2012). 

  16. Transcrição em francês: “fraternité naissante”. 

  17. Transcrição em francês: “C’est à partir d’ici que tu retrouvera ton équilibre et le sens de ta vie”. 

  18. Transcrição em francês:
    “– Dit-moi, comme sont les pays que tu as visités ?
    – Il y a des villes, des villages et des forêts, comme ici. Pendant des mois, il fait froid et tombe la neige.
    – La neige ? Je n’ai jamais vu… Elle est blanche ? Pour quoi il n’y a pas de neige noire ?
    – Parce qu’il n’y en a pas. Mais si tu en veux vraiment, j’en fabriquerai pour toi.”. 

  19. Reproduzo aqui as legendas presentes na cópia do filme exibida na Mostra, apresentando a seguir uma transcrição do áudio em francês: “coup de masque”. 

  20. Transcrição em francês: “Quinze ans après les indépendances… les mêmes fantasmes”. 

3 respostas em “Desterro, desejo, delírio”

Vou fazer aqui uma pergunta off-topic: você conhece alguma bibliografia para estudar o valor narrativo cinematográfico de La noire de … ???
Grato

Os comentários estão desativados.